quinta-feira, 30 de junho de 2011

O PRIMEIRO TRABALHO A GENTE NUNCA ESQUECE

O PRIMEIRO TRABALHO A GENTE NUNCA ESQUECE

Elaborar um relatório de todas as atividades no começo do mês. Carregar pra lá e pra cá pilhas de processos. Casualmente, elaborar ofícios a outros órgãos públicos sujos e anacrônicos. Rascunhar despachos ministeriais padronizados. Carimbar folhas velhas de papel. Manuscrever (não digitar) centenas de nomes e números sem qualquer sentido no livro-carga de autos. E por fim, atender ao balcão das lamúrias.
Atender ao balcão era a cereja do bolo. Aquele móvel velho que separava a minha mesa do público era uma espécie de imã para a loucura. Posso estar exagerando, mas tinha a perfeita sensação de que todas as pessoas mais piradas que iam ao Fórum Central se sentiam atraídas a terminar prostradas no balcão, defronte à minha mesa. Algumas figuras lendárias batiam ponto na sala 324, como um albino de cabelo armado que jurava ter sido abduzido na madrugada anterior. Meus colegas de repartição morriam de medo quando surgiam essas figuras muito fora da curva, mas, pessoalmente, confesso: adorava dar trela às histórias e ouvir até onde iam os limites da insanidade humana. Abduzido é? E o cara começava a sustentar, cheio de propriedade, descrevendo a cena nos mínimos detalhes. Daí te levaram pra dentro da nave? E quantos eram? Mais de dez? Tinha uma ET que era gatinha? Não acredito! Agora só falta você me dizer que a ET fez contigo algo mais do que só abduzir?
O primeiro trabalho a gente nunca esquece. Pelo fato de trabalhar na seção de conflitos familiares, uma cena muito comum era o pai entrar na sala junto com a filha adolescente embuchada, e bater a mão no balcão:
- E aí moço? O que faço agora? Hã? Quer dizer que ela abre as pernas para um pé rapado qualquer...
- E agora sou eu que pago a conta?
- É justo?
Tinham também os loucos perigosos. Certa vez entrou um daqueles com gramíneas no cabelo e cecê acumulado ao longo de no mínimo duas semanas, e que na maior naturalidade já chegou intimando:
- Cadê o juiz corregedor? Quero falar com ele. Ele está?
- Sobre o quê, senhor?
- É que depois de quase 30 anos aí pagando cana no interior, saí esses dias, voltei pra rua, e sabe como é né, tô querendo ficar só na moral, mas os segurança lá da rua não tá deixando eu cuidá dos carro dos bacana.
- E?
- E eu quero falar com o juiz corregedor aí pra vê se o homem resolve as minhas treta, porque se não, vou ter que voltar a delinqüir, cê tá me entendeno?
Pausa. Quase trinta anos, "cumprindo” cadeia? No Brasil? Deve ter sido condenado a uns 150 anos na sentença, e na cadeia devia asfixiar um por mês. Detalhe: era bem cedo. Só estávamos eu e ele na sala.
- Mas por que o senhor não experimenta cuidar de carros em outras ruas? – sugeri na maior das boas vontades.
- Tá louco? Toda rua já tem o seu flanelinha – enervado. – Peraí? É você que é o juiz corregedor?
- Não.
- Então chama logo o cara, se não eu vou ter que voltá a delinqüi. – lacrimejando os olhos.
Orientei-o a se dirigir ao vigésimo andar do prédio, onde ficava a Corregedoria Geral da Justiça. Felizmente, o sujeito se convenceu de que era para lá onde deveria ir e resolver o seu problema pontual. Mas passei uma semana pensando nele e no país louco em que vivemos.
Outro ilustre personagem que batia cartão no Fórum era uma anciã, filha de emigrantes ingleses fugitivos da primeira guerra. A velhinha atribuía a si o título de primeira sexóloga do Brasil. A senhorinha gostava de mim, já chegava me chamando pelo nome, tudo porque eu saía de braços dados com ela pelo saguão dos elevadores. Enfim, apesar de sua idade bem avançada, havia um jovenzinho de vinte e poucos que ainda a tratava como uma dama. Um dia a idosa chegou e me disse:
- Nunca se case menino. Transe à vontade, casar nunca!
- Por quê?
- Porque só tem carreirista nesse mundo! Só perdigueira oportunista...
Havia quase vinte anos que a auto-intitulada primeira sexóloga do Brasil batia às portas da Justiça para pedir pensão contra o filho, que esperava até o último minuto, quando saía o mandado de prisão, para aí sim depositar a dívida, segundo a mãe por causa da nora, uma maquiavélica que fizera lavagem cerebral nele e causou a ruptura entre os dois. Daí toda a mágoa da velha com as mulheres e com o casamento. Apesar desse motivo ácido que a levava até minha sala, a sexóloga também era uma figura genuína, com um lado bem divertido. Sempre trazia alguma novidade insólita, como a foto em P&B dela de seios desnudos na Sapucaí, numa época em que isso era crime de atentado violento ao pudor.
Agora, sem dúvida alguma o sujeito mais insano que apareceu no balcão das lamúrias foi um jovem magricelo de olhos arregalados que entrou na sala, e ao me aproximar do balcão para atendê-lo, ele começou:
- Sabia que eu sou um fantasma?
Até aí normal. Àquelas alturas eu já tinha alguns anos de Fórum, essas declarações estapafúrdias nem me impressionavam mais. Até que o gasparzinho continuou:
- Eu vou matar o juiz da 4ª Vara! Amanhã o doutor Laureano vai amanhecer comendo formiga!
- Calma, senhor. Diga qual o seu problema e vejo se posso ajudar...
Jogou sobre o balcão um saco plástico contendo milhares de documentos velhos para justificar as intenções homicidas. Mostrava uma infinidade de escrituras, termos e contratos que supostamente atestavam a sua condição de herdeiro de uma grana preta. Acontece que a herança estava toda enrolada, dessas cujo patrimônio foi amealhado em cima de corrupção, lavagem e outras origens ilícitas, e que agora, segundo o fantasma, estaria na mira de advogados, empreiteiras e magistrados, todos bem dispostos a lotear um quinhãozinho no imbróglio. Por causa disso, o único herdeiro legítimo – ele - estava temerário de que não lhe sobraria nem um cafezinho.
- Ó aqui ó...
Levantou a blusa, mostrando marcas de quatro balas cravadas entre o peito e as costas.
- Tem uma pá de neguinho aí querendo me derrubar, sabia?
- E como posso ajudá-lo em relação a isso?
- Não sei. Só sei que amanhã eu vou matar o doutor Laureano.
- Matar um juiz pode ser algo perigoso.
- Perigoso? Você lá sabe o que é perigoso?
Aí o cabra pegou pesado. Abriu uma pastinha azul e tirou uma foto de centenas de cobras tomando sol numa pedra. De acordo com o nauseabundo, a pedra da foto ficava numa ilha chamada Queimada Grande, entre Peruíbe e Itanhaém. Já aquelas serpentes, que no mundo todo só habitavam a tal da ilha no litoral paulista, estariam entre as peçonhentas mais venenosas do mundo, se não as mais (se duvida, procura no Google a jararaca-ilhoa).
- E eu fui picado por elas!
- É mesmo?
- Fui..
- E aí?
- Aí passei dois meses agonizando sozinho na cama. Suava frio dia e noite. Fiquei esse tempo todo sem saber o que é dormir uma noite inteira.
- E aí?
- Aí perdi todos os dentes da boca.
Pah.
Arremessou a dentadura sobre o balcão.
E deu-me um sorrisinho banguela.
Como ia dizendo, o primeiro trabalho a gente nunca esquece.

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