quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O AMBIENTALISTA DO CONDOMÍNIO

Caro senhor condômino do apartamento 47 bloco B,

Conforme estipulado na Assembléia Geral Ordinária do Edifício Piazza Del Monte, o senhor deve providenciar a imediata retirada das plantas do corredor. Se a medida não for atendida dentro do prazo de 5 dias, a Administradora do condomínio será obrigada a aplicar pena de multa, conforme previsão em Estatuto.
Atenciosamente,
Cabreúva Imóveis LTDA


- Bando de ejaculadores precoces! Como assim? Por que encasquetar tanto com um vaso de planta? Ah, mas não ficar assim não...
- Não?
- Não. Vai ter vingança!
- Vingança? – minha mulher.
Abri o word e comecei a digitar uma carta-resposta:


CARTA-RESPOSTA


Aos caros condôminos que na última Assembléia Ordinária deliberaram pela retirada do vaso de plantas do corredor,

Em atenção à notificação que recebi da Administradora Imobiliária, gostaria de prestar aos senhores alguns esclarecimentos sobre o assunto. Primeiro. Antes de mais nada, queria pedir desculpas pelos inegáveis incômodos que certamente nosso vaso de avencas vem causando na vida de todos vocês. Claro, no fundo, mesmo nós do 14b sabemos: plantas são seres anti-estéticos, nefastos, repulsivos e que só denigrem ainda mais essa nossa m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-a e árida área social. Aliás, só colocamos as plantas ali porque somos pessoas profundamente infelizes, sexualmente frustadas como voc ..

- Tá louco? – minha mulher de novo, passando para ler a tela do computador.
- Vai adiantar alguma coisa lançar mais merda ao ventilador? Por que ao invés disso, você não faz uma enquete?
- Uma enquete?
- É. Veja quantos de fato são contra a permanência das plantas no corredor. Aposto que é uma minoria. De repente, e se a enquete confirmar isso, a gente até consegue mudar a decisão da Assembléia...


A ENQUETE


Caro condômino do Piazza Del Monte,

Por determinação da última Assembléia Geral Ordinária, ficou estipulado, que o vaso de plantas localizado no corredor social bem defronte à janela do apartamento 47B deve ser retirado no prazo de 5 dias, sob pena de multa. Ocorre que nós do apartamento 14ª colocamos o vaso justamente na frente da nossa janela porque fica numa área de circulação do condomínio, e as plantas são um meio de preservar a privacidade sem fechar as persianas, que obstruiriam significativamente a entrada de sol e ar em nosso apartamento.
Por estes motivos (para nós muito valiosos!), gostaríamos de confirmar se ainda assim o senhor(a) condômino(a) não está de acordo com a permanência das plantas no local.
Ressaltamos que, caso a maioria opte pela permanência, nós nos responsabilizamos integralmente pela manutenção das plantas, bem como pelo cumprimento de outras condições que os senhores tiverem a sugerir.


RESULTADO DA ENQUETE


24 votos em “concordo com a permanência”, sem imposição de condições, 5 votos em “concordo desde que cuidem das plantas”, e finalmente, 6 votos em “não concordo”, dos quais um deles, possivelmente de autoria do condômino que capitaneou a campanha anti-vaso na última Assembléia, trazia o seguinte recadinho indigesto:

“O morador deveria ter avaliado os prós e contras da localização do apartamento quando da compra, e não agora, transferindo aos demais moradores o ônus dos problemas que encontrou. Além disso, as plantas estão muito feias e mal tratadas.”

Está bem vai que a avenca japonesa, no meio do inverno seco de julho, não fica lá muito bonita. Mas daí a dizer que estivesse tão feia e mal tratada? De toda sorte, o resultado favorável na votação informal nos deixou bastante animados, e por essa razão decidi simplesmente não tirar o vaso. Confesso que menos por razões ecológicas, mais por picuinha mesmo de condomínio, resolvi sustentar a briga até o fim e assumir os riscos. Dali a dois dias, o síndico do prédio bate à porta da nossa unidade:
- Viu, tem um pessoal aí que tá ligando todo dia na Administradora para exigir a multa das plantas. Você não vai tirar o vaso não?
O síndico não era contra as plantas, mas, com toda as suas compreensíveis razões, ele era contra ter que aturar gente mal resolvida infernizando o seu ouvido por conta de um vaso no corredor social.
- Sabe como é, esse pessoal não tem mais o que fazer, então eles ficam cobrando a minha assinatura, já que sem ela a multa não sai.
- E o senhor assinou?
- Não, jamais faria isso antes de vir aqui falar contigo...
- Dá para segurar mais uma semana?
Uma semana nos foi dada. Nesse meio tempo, a minha missão não era lá das mais fáceis. Marcar uma Assembléia Extraordinária, conseguir o quórum mínimo de presença, ou seja, inventar algum assunto menos egoísta do que o vaso de plantas para reunir o povo, e então, finalmente confirmar oficialmente a maioria verde expressa na enquete informal. Por uma dessas coincidências da vida, no dia seguinte descobri que o destino começava a jogar a meu favor. Um casal preocupado com outras questões veio nos avisar sobre a realização de uma Assembléia Extraordinária para tratar de diversos assuntos. Pronto, pensei. Bem mais fácil do que eu imaginava. Agora era só ir lá e pedir para incluir na votação da permanência das plantas.



A ASSEMBLÉIA EXTRAORDINÁRIA


Sentei-me quinze minutos antes do horário marcado. À essa ocasião pré-reunião, claro, alguns condôminos já caíam no clichê de criticar as altas taxas do condomínio ou as cochiladas do porteiro da noite. Foi quando me dei conta de que embora difundida sob a alcunha de Assembléia Extraordinária, não era lá bem isso o que significava aquela tertúlia condominial. Tratava-se sim de um encontro informal, aliás do qual nem o síndico fazia parte. Bem mais complexo do que eu imaginava, o que estava em curso ali era um engenhoso golpe do casal organizador da reunião para depor o síndico atual, daí a razão para ele próprio não estar presente. Rapidamente percebi que o marido do casal estava obcecado com a ideia de ascender ao poder e tornar-se ele a principal autoridade condominial. Só o que eu jamais podia imaginar naquele momento, fui só descobrir depois de a reunião terminar, o mesmo cara obcecado pelo poder era também quem exigia a multa do vaso, e quem colocou o recadinho na enquete dizendo que a avenca estava feia e mal tratada...
Voltando à reunião, diante do clima de animosidades de seus participantes, entrei na balbúrdia para dizer que não adiantava ficarem discutindo um monte de coisas se aquele encontro não tinha valor oficial. O máximo que se podia fazer naquele momento era agendar uma pauta de assuntos para votação, e o mais importante, marcar uma data para a realização de uma Assembleia, desta vez com a presença da imobiliária, do síndico atual e de tudo o mais que fosse necessário para se tornar oficial. O obcecado aspirante a síndico, que era novo no prédio e não sabia que eu era o dono das plantas, foi o primeiro a aplaudir minha sugestão. Sorriu pra mim, talvez pensando assim – ah, esse aí vai votar em mim pra síndico! E eu, recebendo o sorriso do sujeito, pensei – ah, esse aí votará na permanência da minha plantinha!


A RENÚNCIA


No dia seguinte o síndico do condomínio ficou muito fulo da vida com a realização de uma reunião extra-oficial, sem a sua ciência e consentimento, então foi à imobiliária e renunciou ao cargo. – Chega dessa gente mal resolvida. Imagino que tenha pensado ao abdicar da sindicância. Sob a ótica dos meus interesses, o lado bom é que até o dia da Assembleia estava garantido: não sairia a multa pelo simples fato de que não haveria síndico para assiná-la. Em contapartida, o zelador veio me contar que além do síndico, também as minhas plantinhas o candidato único queria tirar. Exato, candidato único. Não surgiram outros condôminos interessados em concorrer à vaga, só ele, o golpista. Não por isso. A briga em torno das plantinhas tornou-se uma questão de honra tão forte, que ao saber desse desinteresse dos outros de concorrer à vaga, não hesitei. Candidatei-me ao cargo mais mico da vida urbana: síndico de prédio numa cidade como São Paulo, habitada por pessoas que passam o dia no trânsito, no trabalho, no trânsito de novo, e terminam na televisão, caso não haja algo reunião de condomínio ao fim do dia.


A CAMPANHA


Uma vez aceita a briga, obviamente não podia nem pensar em perdê-la. Como nunca tive qualquer experiência política, a campanha saiu meio na base do improviso. Com pouquíssimos recursos financeiros, e ainda por cima sabendo que eu não era nem de longe a pessoa mais popular no prédio, usei a gráfica de um amigo para imprimir um punhado de folders cheios de árvores, bichos, mares e sóis, dizendo assim:
- Vote no ambientalista do condomínio! Por um edifício mais verde!
Um amigo publicitário foi quem sugeriu esse rótulo de ambientalista do condomínio. Dizia que era marcante e tinha tudo a ver com a minha luta. Segundo ele, a força do rótulo poderia seduzir aqueles eleitores que encaram as eleições da mesma forma como escolher um sanduíche na lanchonete. O sujeito vê a foto no painel luminoso, acha-a bonita, nem se informa sobre todos os ingredientes do lanche, também não se dá ao trabalho de ler o cardápio para comparar o lanche da foto com as demais opções, e seduzido apenas pela imagem forte, pede logo um igual.
Porém, alertou o publicitário, a eleição nem sempre é composta somente por eleitores descompromissados. Há também aqueles politizados, que querem se identificar com alguma uma bandeira do candidato, de preferência de apelo popular. Daí que no folder ele sugeriu colocar alguma promessa do tipo enxugar despesas condominiais. Então, o folder ficou assim:


VOTE NO AMBIENTALISTA DO CONDOMÍNIO!


A favor da reciclagem em todas as suas formas, o ambientalista do condomínio é contra o desperdício, inclusive do seu dinheiro, caro condômino. Proponho a instalação de um sistema de reúso de água, pretendo ainda implantar placas solares na cobertura, pois um estudo projetado comprova que em seis meses já teremos recuperado todo o retorno do investimento inicial, e faremos uma economia média de 30% ao mês em relação às contas atuais.

Minha mulher sugeriu outras ideias boas também. Lembrou do meu tio, um arquiteto paisagista que gosta muito da gente, então mandamos imprimir outro folder, dessa vez garantindo que uma vez eleitos, conseguiríamos um projeto gratuito de paisagismo para o prédio, que além de proporcionar bem-estar e inegável prazer estético aos moradores, também valorizaria o preço das unidades condominiais.
Foi uma semana intensa distribuindo os panfletos antes e depois do trabalho, e depois passávamos a noite discutindo quais estratégias adotar para o debate no dia da Assembléia. A cônjuge dizia que era muito importante olhar no olho da plateia, dizer as coisas com firmeza, mas sem jamais perder a simpatia. Foi com enorme satisfação que durante a mesma semana encontrei alguns condôminos na garagem, e eles demonstraram bastante simpatia à causa ambientalista. A dona Jheny, por exemplo, disse para não tirarmos o vaso de jeito nenhum, mesmo que eu saísse derrotado, pois ela já morava lá há mais de três décadas, e se fosse o caso, ele segurava a bronca da multa. Já o seu Alcides do segundo andar comentou com simpatia sobre o sobrinho agrônomo, que também podia me dar umas dicas de nitrogenados para fazer a planta do vaso crescer melhor e ficar mais verdinha. Graças à campanha eleitoral, descobri que não estava sozinho, sim, havia alguns simpatizantes do vaso e da causa verde, o que me dava alguma confiança para enfrentar as urnas.
Por outro lado, o embate prometia ser duro. Quando a oposição descobriu que estávamos distribuindo folders de campanha, não perdeu tempo e fez o mesmo. Só que ao invés de fazer como eu, lançar uma agenda programática, oferecer propostas sérias para o mandato, eles desceram ao terreno baixo da calúnia, injúria e difamação. Disseram que se eu mantinha até hoje a plantinha no corredor, ignorando por completo a última Assembléia, então logicamente que uma vez no poder, eu atropelaria a lei condominial e cometeria desmandos muito maiores. Era um jogo pesado. Os puxa-sacos de plantão da oposição, aqueles que teriam assento garantido no conselho financeiro se o cara ganhasse a eleição, saíram espalhando pelos quatro cantos do condomínio que o candidato ambientalista era um maluco beleza que vinha com esse papo de paz, amor e natureza, mas no final de semana perturbava toda a vizinhança do bloco A com festinhas que se arrastavam madrugada adentro. O mais gozado foi quando, uma noite antes da eleição, abriu a porta do elevador só comigo dentro, e quem apareceu? Ele, meu adversário político. Espantou-se como se estivesse diante de uma assombração. Nem chegou a dizer “boa noite” e aparentou profundamente amedrontado. Isso me fez perceber que sim, nossa campanha o intimidara, o sujeito agora me respeitava como adversário e, tanto quanto eu, tinha muito medo de perder a eleição.


A ELEIÇÃO


Pouco antes de descer ao salão de festas, minutos antes da Assembléia começar, fui cuidar do figurino. Escolhi uma camisa toda psicodélica, arrebatada no Mercado Mundo Mix, cheia de ondas azuis eletromagnéticas e distorcidas. Uma estampa bem chamativa, bem chocante, bem com a cara de Mercado Mundo Mix. Segunda medida da noite: preparei um chá de erva cidreira, gengibre e folhas secas de romã para acalmar os nervos. E desci para a reunião carregando o cálice de barro fumegando, que mais parecia uma imitação vagabunda de Santo Graal. O salão de festas já estava lotado. No entanto, evidentemente a razão para um quórum tão alto não tinha nada que ver com o meu vaso de plantas, e tampouco com a própria realização da eleição para síndico. Como sempre, só mais uma chance de a turma reivindicar redução nas taxas de condomínio e exigir cobranças mais enérgicas dos inadimplentes, que cresciam dia após dia.
Na mesa principal, defronte às cadeiras espalhadas pelo salão, uma pessoa da imobiliária abriu os debates concedendo a palavra primeiro ao meu opositor:
- Quero ser síndico porque não suporto mais ver esse prédio ao Deus dará. Os apartamentos de cima estão com infiltração e ninguém faz nada. Roubaram o rádio do carro do 33B na garagem, e nada também, não puseram câmera, aliás, nem uma cerquinha elétrica sequer. Se eu for eleito, a primeira coisa que pretendo fazer é reduzir a folha de pagamento demitindo o vigia da noite, pois me sinto um otário sustentando alguém que simplesmente passa a noite dormindo.
Dessa vez não aguentei. O Miguelito era brother.
- Eu não! Sou totalmente contra mandar embora o Miguel! Por um acaso vocês já experimentaram a cocada da mulher dele? São simplesmente as melhores que já experimentei! Estou até vendendo lá na firma, precisam ver o sucesso que faz as de abóbora.
Naquela hora, o sujeito calvo do apartamento 41, bloco A surtou. Falou berrando que havia assuntos sérios demais para alguém ficar de brincadeira. E embora até fossem reais as virtudes das cocadas e o meu apreço pelo porteiro da noite, também era público e notório que Miguel roncava em serviço. Sendo assim, a maioria esmagadora era mesmo a favor de sua demissão. Para agravar, o meu adversário político não perdeu o fio da meada:
- Estão vendo? Eu não falei que esse rapaz não era pessoa séria? Não disse que o ambientalista é um fanfarrão?
- Eu sim sou sério e tenho uma proposta para o nosso condomínio!
- Na minha gestão, as taxas diminuirão e os inadimplentes não terão mais vez. Vamos pagar um escritório de advocacia para penhorar o apartamento, se for necessário. As reformas que há muito precisam ser feitas, prometo que comigo sairão do papel. Na minha gestão, transparência será a palavra. Vocês terão prestação de contas de tudo. Qualquer rubrica, por mínima que seja, será lançada no balancete mensal. Pretendo ainda propor diversos mudanças no lay out da área social, deixar esse salão com uma cara melhorzinha, arrumar o hall social, e a primeira medida será tirar de uma vez por todas aquele vaso horrível do candidato aqui ao meu lado..
- Você sabe por que as minhas plantas estão quase morrendo?
- Por um acaso você sabe por que isso está acontecendo? - Sim, claro. Porque você não consegue cuidar nem de uma planta, quanto mais do condomínio...
- Engano. Porque você secou a minha plantinha, seu infeliz. A tua energia é tão ruim, você é tão mala, que a avenca simplesmente não aguentou...
Daí em diante o circo pegou fogo. O cara ficou todo machão, levantou-se e quis sair pra cima. Acabou sendo segurado por várias pessoas, enquanto meu coração quase pulava para fora da boca. Fiquei tão desiludido com tudo, que depois disso não consegui mais levar o papel e a briga adiante. Joguei a toalha deixando a reunião sem nem participar da votação, convicto de que política carece de vocação, e definitivamente eu não a tinha.


O RESULTADO


Votação esmagadora para ele. Do meu lado, um voto da dona Jheny, um do seu Alcides, outro da magricela macrobiótica cujo nome ora me falta, além de mais dois ou três sem origem identificada. Na manhã seguinte, as plantas foram tiradas do lugar, restando como consolo a multa que nunca foi aplicada. O opositor assumiu o mandato e nunca cumpriu quaisquer de suas promessas de campanha. Com o tempo, os condôminos que o conduziram ao cargo descobriram aquilo que eu e as plantas já sabíamos: o sujeito era um palerma irremediável. Pediram o seu impeachment, mas ele só abandonou o cargo depois de muita resistência, quando a situação chegou ao insustentável e foi organizada uma liga de velhinhas rebeldes. ps: Qualquer semelhança da história com a realidade terá sido mera circunstância do acaso.




quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O FLERTE



Outro dia um primo meu lá do Rio convolou núpcias. Grande evento na família Zequinha ter casado, tanto que num lapso de extrema sinceridade, o noivo interrompeu a cerimônia para confidenciar, diante de seus mais de 200 convidados, que nunca imaginou que aquele dia pudesse de fato chegar. Sabe como é, carioca, surfista, bicho acostumado a andar solto, muito embora, ao que sei sobre seu respeito, trata-se de sujeito muito bacana, decente e trabalhador. Casou-se com uma produtora da Globo e por conta disso os bancos da igreja estavam todos estrelados. Olha, aquele ali é o Marcelo Serrado, cochichava a cônjuge no meio do sermão. E esse aí, sentado ao seu lado, é o Marcos Palmeira. Ah, e tá vendo lá na primeira fila? Nossa, como é mais bonito ao vivo... Marcelo Novaes? De minha parte, só reconheci a Luana Puovani, que ao final da cerimônia desfilou pelo corredor central numa pompa tal, que alguém precisava ir lá avisar a ela que não era a noiva e sim a madrinha da noiva. Sondagens globais à parte, antes de acabar a missa o meu primo interrompeu de novo o cerimonial para convocar a presença do presbítero também na festa. Ao melhor estilo carioca, recorreu ao tentador argumento de que o pároco deveria relaxar um pouco da agenda sacramenteira com umas cervejinhas. Muito educado ele agradeceu, mas não foi, nós sim fomos ao clube dos Macacos, um lugar lindo, cercado de palmeiras imperiais, estrategicamente localizado num ponto alto e isolado do Horto Florestal.
Chegando à festa, a orgia etílica já desfilava a todo vapor em cima das bandejas. Um tal de Prosecco pra lá, cerveja pra cá, até uísque naquela noite cálida descia bem em mim por causa do gelo. Até que chegou aquele momento X das festas de casamento em que de duas uma: ou o DJ fica muito bom, ou simplesmente a bebida sobe à cabeça da turma (ou a conjugação dos dois), enfim.. Fato é que de uma hora para outra todo mundo levanta da mesa, desiste de papear, e vai aos pouquinhos se aproximando da pista de dança. Isso aconteceu quando minha caçula de um ano dormia pesado no carrinho de bebê e a de seis se aconchegava por conta no sofá. Cenário perfeito para dois filhos adultos de Deus, no caso eu e a cônjuge, lembrarmos que há sim vida fora do núcleo familiar. Fomos também para a pista aproveitar o convidativo set list do DJ, que à ocasião recorrera ao hit “Jungle Boogie” de George Clinton. Feliz da vida, fechei os olhos, mergulhei na melodia da música, quando de repente um cara de porte razoável invade a rodinha e vem seco na minha direção:
- Escuta aqui mermão. Se liga aí que tu não tira o olho da minha mina, tá ligado?
- Como assim?
- É. Até ela já veio me dar um toque. Faz seguinte. Fica na manha, pára de olhar pra ela e eu te dou um desconto e faço de conta que nada aconteceu.
- Olha, entendo tua preocupação, mas na boa? Tô aqui na minha, curtindo o casório do meu primo ao lado da minha mulher (apontando-a), e até as nossas filhas estão aqui. Tá vendo aquele carrinho de bebê ali? É a pequininha. A mais velha é aquela babando lá no sofá, ao lado da piscina. Sinceramente? Nem sei quem é a tua mulher..
- Não vem com 171 pra cima de mim que antes da minha mina falar que tu não tira o olho dela eu já tinha sacado todo o movimento.
Nesse momento de reiteração da participação da garota na crença de que eu a cobiçava, o sangue subiu à cabeça, e mesmo o sujeito sendo o dobro de mim, senti um enorme desejo de mandá-lo para a meretriz que o pariu. Ao invés, porém, de partir para o tapa, com o corpo e a mente anestesiados pelo álcool, adotei uma postura mais política:
- Cara, olha aqui no fundo dos meus olhos...
- Eu te amo. Vá com Deus. – estendi-lhe a mão
Impressionante como a frase “eu te amo”, depois a “vá com Deus” seguida de uma mão estendida anulou o ímpeto do machão. Durante e depois de cumprimentá-lo, o sujeito ficou um tempo parado diante de mim, estatuesco, até esboçar uma careta de não mais saber por que raios estava ali. Saiu de mansinho, tão de mansinho, que nem de longe lembrava o pit-bull de minutos antes avançou. Ainda passei um bom tempo curtindo e dançando na pista sem mais vê-lo por perto. Inclusive, sinto bastante não ter matado a curiosidade de descobrir se além de insegura, a namorada do cara era bonita. Curiosidade meramente científica, já que tenho uma teoria (ainda não definitiva) de que quanto mais bonita a mulher, mais insegura. Queria, portanto, coletar bases empíricas mais robustas antes de afirmar com segurança se há mesmo essa tendência, uma vez que regra absoluta eu também já sei que não é. A caminho do hotel, no táxi amarelinho, com a cabeça deitada sobre o ombro da cônjuge, apreciando a caçula desmaiada no bebê-conforto, sentindo as pernocas da mais velha sobre meu colo, lembrei que felizmente as minhas mulheres são lindas e seguras.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

A FAVELA DO MANGUE


Bons alqueires de Mata Atlântica separam a favela do Mangue da nossa churrasqueira, erguida no meio da floresta. Isso significa que embora estejamos confinados em um condomínio fechado, ao lado esquerdo do lotealmento, onde os vizinhos são apenas árvores e bichos, não foram levantados muros de proteção.
Tempos atrás, veio a Hildinha me contar sobre o pessoal da favela do Mangue, que se embrenhou na mata e aproveitou a inexistência do muro para entrar no condomínio. Algo como 1 km de floresta densa desbravada. Curiosamente, havia mais de 15 casas para eles elegerem como ponto de chegada, e foram escolher justamente a nossa churrasqueira, felizmente não nos dias em que costumamos ocupá-la. Os trilheiros do manguezal cruzaram a mata no meio de semana, por ser essa a melhor ocasião para surrupiar casas de veraneio. Ao que soube depois, até fizeram sim pequenos furtos na vizinhança, não, porém, na nossa casa. Mas deixaram uma caixa de cerveja camuflada atrás da churrasqueira, no meio da floresta, a mesma qual decidimos consumir por acharmos que os donos não voltariam para pegá-la.
Motiva-me uma reflexão sobre o episódio porque antes da invasão deles ao condomínio, eu já havia me dado o direito de fazer o inverso. Tanto quanto os larápios, invadi um mundo ao qual não pertenço, não a pé e pelo mato, de bicicleta e pela estrada. Descobri a favela do mangue por total acaso, numa manhã de sábado qualquer, indo comprar peixe nas bancas da praia do Perequê. Sabe como é, circular de bicicleta pelo mundo desperta curiosidades nas pessoas que os vidros do carro te privam, então, pintou uma curiosidade de desvendar o que a orla do Perequê escondia. Logo atrás das primeiras bancas de peixe, saí ziguezagueando por um beco bastante comprido, formado por muros altos das primeiras casas de alvenaria. Ao final do beco, acabam as construções mais sólidas e chega-se, enfim, à favela. Um conjunto de casas coloridas, uma enorme palafita erguida sobre o rio que deságua no mar. Na maré baixa, os moradores dos casebres de madeira carcomida e tinta descascada presenciam hordas de crustáceos que sobem pelas estacas e surgem por todos os lados. Devido ao forte calor que faz naquele canto do litoral paulista, o esgoto das casas se mistura ao enxofre do mangue, e principalmente na maré baixa, o odor fica desagradável. Já na maré alta o cheiro alivia. Postas de lado as nuances olfativas, curti bastante os pontilhados que conectam as casas e balançam como se você estivesse num barco, com a vantagem de que prazerosos estalos são emitidos pelas rodas da bicicleta em movimento na superfície marceneira. Em volta dos casebres de porta aberta, crianças de membros esquálidos e barriga roliça empinam pipa, enquanto suas mães se dividem entre uma bronca e outra descamada da tainha. Gospel, rap e forró de Fortaleza compõem a trilha sonora do ambiente. Gatos lambem as cabeças de camarão descartadas aos montes no chão. No fundo da favela, onde acabam as habitações, começa o campinho, local em que a molecada mais velha se reúne para bater uma bola e lançar tarrafa na parte mais funda do rio. Embora aquelas águas estejam poluídas, dizem que tiram peixes, caranguejos e até enguias. Na última vez que estive na favela do Mangue, fiz questão de ir acompanhado. Pus a Maricota (minha primogênita) na cadeirinha da bicicleta, pois sabia que ela se interessaria pelo cenário de cinema ao ar livre:
- Pai, eles que são os “pescadores”? – repetia incansáveis vezes, como se tal condição os transformasse em seres de outro planeta. Até que mais para o meio do rio, numa ruela então desconhecida de mim, veio caminhando um moleque grande, alto, não mais que dezesseis anos. Mancava muito, possuía escoriações por todo o corpo, seu olhar denunciava um terrível sofrimento. Aproximando-me mais, notei ainda uma enorme ferida no couro cabeludo, que sem exagero? Parecia expor os miolos do garoto. Mais à frente, outros dois rapazes nos encararam de um jeito que deu vontade de deixar de exisitir.
Tempos depois, quando veio a Hildinha reportar a história da trilha ligando a favela ao condomínio, confirmei a suspeita de que aquele mangue guarujaense abriga espécimes da mais alta periculosidade. São poucas, é verdade. A maioria é da paz, no entanto há sim alguns tipos bem temidos que habitam o ecossistema local.
Sem qualquer pretensão de militância social, menos ainda querendo suscitar discussões políticas ou ideológicas, mas sem também sentir vergonha de assumir uma certa inocência, própria de quem vê poesia na pobreza só porque nunca soube o que é de fato viver na pobreza; termino por aqui, curioso para saber se algum dia no Brasil os pobres deixarão de ser invasores na terra dos ricos, e os ricos na terra dos pobres.


quarta-feira, 3 de agosto de 2011

RAVE INFANTIL

No aniversário de sete anos da mais velha, a cônjuge teve a brilhante ideia de comemorar fazendo um acampamento no quintal com todas as crianças da classe. Começou às oito da noite, com as crianças comendo uma pizza. Depois elas partiram para um caça ao tesouro contendo mais de quinze pistas espalhadas pela casa. Finda a caça, uma balada pesada na sala que deixou as crianças excitadíssimas. Para acalmar os ânimos dançantes, emendamos uma sessão de cinema. Pantera Cor de Rosa. Por fim (uma hora tinha que ter um fim), já perto de uma da manhã e com todos dentro da barraca, uma historieta para embalar o sono geral da nação. Trégua curta na madrugada, interrompida às seis horas da manhã seguinte, com a molecada curtindo a barraca e aproveitando os primeiros minutos do sol para ler revistinha da Mônica. Ainda recebemos os pais que vieram tomar um café da manhã e pegar os filhos. Ou seja, a rave infantil começou às oito da noite de sexta e acabou ao meio dia de sábado. Diante da curiosidade de alguns pais sobre a noitada, e particularmente sobre como conseguimos sobreviver a ela, elaborei um pequeno diário contando como foi essa experiência.


BALADA 1


Já era quase dez da noite, e eu e meu sogro lá, procurando specks para montar as barracas no quintal, ao mesmo tempo em que ouvindo o rescaldo da música “baby” (Justin Bieber) pela quarta ou quinta vez, até que o Matuco deixa a pista e comparece na área pra dividir um pouco da intensidade do momento:
- Victor, preciso te falar uma coisa...
- O quê Matuco?
- É a música.
- O que tem a música?
- A música está entrando dentro de mim, a música entra dentro de mim, fica lá, não sai de dentro da minha cabeça e...
Vira as costas e volta correndo para o palco.
- Isso porque não tomou um gole de cerveja. – meu sogro.


BALADA 2

Lá pelas onze da noite, depois de a pizza emendar com a caça ao tesouro e a montagem das barracas, eu já estava o pó. Mas a DJ cônjuge continuava lá, firme e forte, alternando Bieber, Michael Jackson e Black Eyed Peas nos embalos de sexta à noite. Percebi então que se não fosse eu o reacionário da casa, aquilo nunca teria fim. Coitados dos vizinhos. Imbuído por esse falso altruísmo que - pah - subitamente desliguei o som, e como resposta imediata, aquele ahhhhh em coro.
- A gente não quer parar agora! É! Liga aí de novo. Põe o Maicol.
- Crianças... Só uma pergunta.
- Quem aqui considera que essa está sendo a melhor balada da vida?
- Euuuuuuuuuuuuuuuuu! – unanimidade.
- Então não me encham mais o saco e agora vão lá atrás decidir quem vai dormir com quem nas barracas.
- Uhhhhhhhhu..



CAÇA AO TESOURO 1


Palmas para a escola Alecrim. Um ano depois do projeto Grécia, nossos filhos ainda preservam a memória mitológica. Se os senhores pais, tal como nós, suam a camisa para chegar ao final do mês e honrar aqueles infelizes boletos do Bradesco, imaginem que a pista nº 2 era essa:

UMA SEMENTE É LANÇADA À TERRA. NASCE ENTÃO UM FRUTO, QUE DEPOIS DE COLHIDO, VOLTA AO REINO DA TERRA. LÁ (NO REINO DA TERRA), QUEM ACEITOU ESSE FRUTO PAGOU COM A LIBERDADE.

Com bem pouca ajuda, pouca mesmo, eles foram se lembrando de Hades, Perséfone, a semente de romã oferecida, e aí a Maricota os levou para conhecer a Romãzeira que está se recuperando ao lado do portão social.


CAÇA AO TESOURO 2


Palmas agora para a Laís. Na caça ao tesouro, havia o seguinte combinado:


CRIANÇAS,
AGORA VOCÊS FORMAM UMA EQUIPE, QUE TERÁ UMA MISSÃO A CUMPRIR:
ENCONTRAR “O TESOURO DA BALADA”.
MAS PARA ISSO, PARA ENCONTRÁ-LO, VOCÊS DEVERÃO SEGUIR AS PISTAS QUE ESTÃO ESCONDIDAS PELA CASA.
ESCOLHAM ENTÃO NA EQUIPE UMA CRIANÇA QUE FICARÁ COMO A RESPONSÁVEL PELA LEITURA DAS PISTAS.
SEMPRE QUE ALGUÉM ENCONTRAR UMA PISTA NOVA, DEVERÁ ENTREGÁ-LA À LEITORA ESCOLHIDA, QUE A LERÁ EM VOZ BEM ALTA PARA QUE TODO O RESTO DA EQUIPE POSSA OUVIR.

Aproveitando o momento político do país (semanas antes da eleição da Dilma), fiz questão de instaurar um sufrágio infantil:
- Quem aqui vota em fulano? – uma mão estendida.
- Quem vota em sicrano? – nenhuma mão.
- E no beltrano – de novo sem mãos.
Candidatando um por um, deixando a Laís de propósito por último, e então, quando faltava candidatar só mais uma criança antes dela, a própria finalmente se manifestou:
- Victor, e eu? Você está esquecendo de mim...
- Crianças...
- Alguém aqui quer votar na Laís?
Até quem já tinha prestigiado outros candidatos decidiu se unir àquela onda democrática. Liderança nata. Nata no sentido de natural, de algo nascido, e não foi só o resultado da eleição que provou o quanto a Laís conquista (e não impõe) a liderança. Conforme as pistas eram encontradas, claro, outras crianças também manifestavam a sua vontade de lê-las. Todas queriam provar às demais e a si próprias que superaram esse desafio tão importante e atual na vidinha delas: a alfabetização. Foi quando intervim novamente para esclarecer que sim, isso até seria possível, desde que a própria Laís deixasse, e para quem ela deixasse, afinal, foi o grupo que agora há pouco a elegera para esse papel. Logo, se cabia a alguém delegar o poder, esse alguém só poderia ser o seu detentor. Foi aí que a alma generosa da menina se revelou. Não apenas por permitir que os outros participassem da leitura, quem a conhece minimamente sabe que isso não surpreende. O mais incrível foi o cuidado que a Lalá teve de abrir a oportunidade para cada uma das crianças interessadas, sem jamais permitir que uma mesma repetisse a leitura, a despeito dos insistentes pleitos daqueles que já tinham lido.



CAÇA AO TESOURO 2


DÉCIMA PISTA

SOU UM MEIO DE TRANSPORTE MUITO ANTIGO


Em disparate para a garagem em busca do tal meio antigo de transporte, nenhuma criança nota que a bicicleta está camuflada detrás das toras de madeira da área de serviço. Com a equipe meio sem norte, meio sem ideias, o Dé raciocina, olha pra mim, parece pensar duas vezes antes de falar, mas mesmo assim decide continuar:
- Ô Victor..
- Esse teu carro aí já tá meio velho, não tá não?



CAMPING 1



Esgotados, quase desfalecidos, não as crianças, eu e a cônjuge, bendita a cine-sessão de Pink Panther. Henry Mancini acalmou um pouco os ânimos da turma, mas nem de longe solucionou o problema. Pior. À meia noite eu e a cônjuge já estávamos sozinhos no time dos adultos. Restaram-nos onze crianças para gerenciar, já divididas em três barracas, todas começando a se aconchegar em seus incomuns aposentos. Claro que àquelas alturas do campeonato, nada mais nelas soava-nos gracioso. Brincadeiras de pum, cócegas, risadinhas, tudo era inoportuno. De cima da janela do quarto, deitada na cama, a cônjuge já dava mostras de jogar a toalha:
- Quietos! Silêncio agora! Se vocês não obedecerem a gente, vamos mudar a distribuição das barracas. Outra coisa. Quero que todo mundo devolva pro Victor essas malditas lanterninhas.
Parênteses. A caça era ao tesouro, mas não um tesouro qualquer. A caça era ao “tesouro da balada”. Então, além das tradicionais perucas e óculos, a cônjuge arrematou na 25 de março aquelas varetas luminosas que animam 9 entre 10 pistas de casamento. Obviamente, dentro das barracas, na curtição da noite, a cambada de impúberes não parava de chacoalhar os tais bastonetes coloridos, brincando de lhes dar as mais diversas formas. Sentindo-me uma espécie de auditor fiscal da receita federal, saí austero pelas portas das barracas, recolhendo um a um os instrumentos. Depois que recebia umas quinze varetas, como todo bom fiscal aduaneiro, não me contentava:
- Cê tá pensando que eu sou lóki, bicho? Passa o resto que eu sei que tem mais...
E tiravam lá mais uns dez, escamoteados debaixo do colchonete. Levei tão a sério a blitze, que talvez por isso a Milena tenha, em nome de toda a turma, resolvido se vingar. Com requintes de crueldade, a cada dois minutos ela gritava de dentro da barraca:
- Victor! Achei mais um!
Chegou uma hora que eu já não agüentava mais levantar do chão pra pegar a porcaria dos bastãozinhos:
- Chega! Pelo amor de Deus, chega! Pode ficar com as tuas lanterninhas, não adianta nem me chamar que eu não vou mais me levantar pra pegar.


CAMPING 2


Como sempre, a retórica punitiva não surtia o efeito calmante que dela se esperava, mas na prática nós não conseguíamos fugir da vala comum das ameaças. Ninguém parava quieto, nenhuma criança se rendia ao sono, e diante disso, tive a brilhante ideia de lhes contar uma história qualquer. Já era quase uma da manhã, então, deitei exausto entre as três tendas sem a menor disposição para tirar um enredo da cartola. Ao invés de tentar inventar, apelei para uma messiânica sessão nostalgia. Em voz baixa, pausada, quase letárgica, resgatei os meus nove anos e a primeira vez acampando no meio do mato. Sem falsa modéstia? Foi fácil até conduzir a molecada para um diálogo mais direto com a natureza. Remeti ao barulho do rio descendo a jusante, o vento sacudindo a copa das árvores, o canto dos pássaros despertando com o sol, e justamente nesse momento new wave da noite, um grilo de verdade que passava pelo jardim também resolveu dar uma forçinha. Ouçam crianças, ouçam com atenção. Há um grilo entre nós. A rítmica da história, que começara a dez por hora, dali a pouco já estava a menos de um por hora. Em seu conteúdo, obviamente nada de emocionante acontecia, só as tais sensações e sons. Diante do repertório de meditação in natura se esgotando, notei, num mix de orgulho e alívio, que metade da turma já dormia pesado. Faltava, porém, a outra. Nessa toada de não perder o fio da meada, aconteceu até uma inesperada empolgação de minha parte. Resolvi me levantar do chão e passar a contar a história de pé, circulando pelas três barracas. E a história que começou como uma obrigação, um mero estrategema para se livrar de um problema, transformou-se num discurso filosófico sobre a existência infantil:
- Crianças...
- Antes de fecharem os olhos e caírem no sono, queria que soubessem de uma coisa muito importante. Saibam que é muito mágica essa possibilidade que lhe deram de existir. Não importa se quem lhes proporcionou esse dom tão precioso foram apenas os seus pais, ou se antes deles teve um tal de Deus, ou quem quer que seja. O que verdadeiramente importa é que vocês existem, são seres queridos e amados; logo, por essas privilegiadas razões, vocês têm tudo para conseguirem aquilo que todas as pessoas no mundo querem, mas só algumas de fato conseguem: a felicidade!
- Todas as fases da vida são incríveis. Todas têm a sua magia e encanto. Mas se me perguntam: Qual a melhor?
- E eu não teria dúvidas em responder: a fase em que estão!
- Aproveitem então. Aproveitem, agradeçam à escola, pois sem ela vocês jamais teriam se encontrado e formado esse grupo tão unido, tão amigo, tão...
De repente, da barraca azul ao lado da janela da cozinha, o discurso inflamado é interrompido por um tímido - clap clap clap - cuja autoria remanesce anônima, ainda que fundadas suspeitas recaiam sobre a insaciável Flor de Maria. Independente de quem tenha vindo, conforta-me lembrar que nessa faixa etária as palmas ainda são sinceras.