segunda-feira, 13 de junho de 2011

BREVE ENSAIO SOBRE A PICUINHA

A piscina do clube é bacana, costuma dizer. Pena que ultimamente ela esteja indo tão pouco, graças à sua dermatite atópica crônica, doença que não se bica com o cloro. A asma da pele faz com que a menina ferva por dentro, mais ou menos como se alguém jogasse pimenta malagueta na pele, fazendo alastrar enormes feridas que não param de coçar. Mas como à ocasião daquela tarde de verão ela também já não estava mais acordando com o lençol manchado de sangue, o pai colocou na balança e viu mais prós do que contras numa ida esporádica à piscina. Valorizando o evento, prometi-lhe a compra de novos óculos de natação, de repente um rosa choque de sua princesa favorita.
Pouco antes, porém, de chegar ao vestiário da piscina, lembrei que o exame médico da menina estava vencido. Pior: a fila da renovação estava enorme. Pior que o pior: um dos maiores contribuintes para a dermatite é a absoluta impaciência de seu portador. Depois fomos saber, a fila estava enorme porque a médica deu cambalacho no ofício, e em seu lugar escalaram uma auxiliar de enfermagem de idade avançada, já com as ideias meio atrapalhadas. Então, bem mais que uma mera dificuldade de garimpar fungos, a senhorinha não tinha a menor intimidade com o computador que validava as carteirinhas. Durante os aproximados quinze minutos que eu e a Maricota ficamos na fila, discutimos bravamente. Ela dizendo que não aguentava mais esperar, eu dizendo para ir se acostumando, pois a vida é cheia de esperas. Quando chegou nossa vez, confesso que já estava quase desistindo do programa.
- Por favor. Abra os pés. Isso. Agora abre bem os dedos. Vira de costas.
Foi aí que notou. A batata da perna da menina estava tomada de manchas róseas, algumas revestidas de cascas esbranquiçadas.
- Micose? – a senhorinha pra mim.
- Não. Dermatite atópica. Uma doença genética, sem o menor risco de contágio.
- Mas... Você tem um laudo médico?
- Sim.
- Posso ver?
- Ficou em casa.
- Mas eu preciso ver.
- Ok. Amanhã eu te trago.
- Não! Precisa ser antes.
- Dona... Já disse que amanhã sem falta eu trago original e cópia autenticada, se você quiser.
- Não me leve a mal, mas infelizmente, sem o laudo não posso liberar.
- Peraí.. A senhora não é médica? Não tá vendo que isso aqui é dermatite?
Sem perceber, cutuquei na ferida, não da minha filha, da examinadora. Óbvio que ela não era médica.
- Não te interessa se eu sou médica ou não! Interessa que o clube precisa de um laudo atestando a doença da menina, e sem isso eu não posso liberar..
Cansado de argumentar com a síndrome do pequeno poder, decidi mudar o foco.
- É o seguinte. Essa aqui é Maria Júlia. Ela tem cinco anos de idade e mora num apartamento quente, apertado, quase insalubre. Hoje, Maricota acordou sonhando com os jatos de água da ilhota da piscina grande e com os toboáguas da pequena. Então, gostaria agora que a senhora dissesse diretamente a ela se poderá ou não nadar hoje.
Saí da sala, mas procurei um ângulo estratégico, bem na entrada da porta, de onde pudesse ver a cara das duas.
- Infelizmente, só com o laudo.
Entrei de novo espumando de raiva e puxei a menina pelo braço sem conseguir olhar na cara da mulher. Saímos dali e sentamos no primeiro banco que encontramos. Olhei pro lado, vi a bichinha com as costas arcadas, braçinhos dobrados apoiados sobre as coxas, as mãos segurando o queixo e um certo esforço no semblante dela para não chorar. Fiz uma força hercúlea para segurar o impulso passional de armar o barraco para ao invés disso, buscar uma solução mais racional, que efetivamente resolvesse o problema. Até que bingo. Bateu o lampejo. Fomos juntos na direção da catraca da piscina, e diante da fiscal de plantão, sorri do jeito mais simpático que pude:
- Oi, tudo bem como você? Viu, a carteirinha dela ficou com a mãe. Pode passar por baixo?
Vupt. Passou. Claro. Normas são feitas por adultos, para adultos. Uma vez lá dentro, valorizamos muito mais ainda o toboágua e a ilhota com jatos d’água. Depois de brincarmos, já exaustos, descansando ao sol que batia na beira da piscina olímpica, aproveitei para explicar à menina as nuances morais que diferenciam a vingança da picuinha.
- Então minha filha, agora que você já entendeu, quero que volte lá, entre na sala da mulher, e balançando os cachos molhadinhos, diga à mulher quão deliciosa a piscina estava.

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