quarta-feira, 13 de julho de 2011

DOBRADINHA DE PRAXE

Outro dia morreu um parente distante. Quer dizer, bem distante vai. Na verdade, só conheci melhor a sua cara depois dela ficar pálida ali, na madrugada do velório. Dado, portanto, esse meu reduzido grau de intimidade com o defunto, até fechei os olhos defronte ao caixão, mas ao invés de lhe dedicar alguma oração e desejar sorte na nova fase, confesso que fui mais egoísta: aproveitei o ensejo para pensar na vida. Ou melhor, na morte. Nada mais apropriado do que um velório para lembrar o quanto a morte faz parte da vida, e que de certezas sobre o futuro, só ela. Gostemos ou não, lembrar uma vez ou outra dessas obviedades talvez nos ajude a sermos mais felizes, só não me pergunte o porquê. Vai ver porque passamos a dar mais valor ao fato de estarmos respirando, ainda que o ar não ande lá dos melhores.
No dia seguinte completei a dobradinha de praxe, comparecendo também ao enterro, que se realizou numa manhão fria e ensolarada no Araçá. Havia um bom tempo não ia a esse cemitério, e para minha surpresa, adorei o lugar. Veja bem, isso não significa que eu pertença a alguma tribo dark, emo, ou a qualquer outro grupo social pós-moderno, caracterizado pelo culto ao vazio e à melancolia. Apenas nunca, jamais imaginei encontrar tamanha paz no Araçá. Desafio o paulistano a localizar, pelo menos nesse miolinho barulhento da cidade, um lugar tão silencioso e pacato. Impossível. Apesar de a dr. Arnaldo estar ali, fazendo fronteira com toda a parte alta do cemitério, a despeito de a avenida Paulista e a Rebouças começarem onde praticamente os túmulos terminam, se você entrar no Araçá, não terá como discordar: a paz total. Para se ter ideia, lá ainda é possível reparar no barulho do vento chacoalhando a copa de árvores frutíferas. E onde não estão as árvores, estão centenas de artísticas geniais, como enormes esculturas de Brecheret e de seus conterrâneos. Sobre o fato de ter um monte de gente enterrada por todos os lados, pelo menos pra mim não foi motivo algum de mal-estar. Tudo uma questão de perpectiva. Por exemplo, outro dia a mais velha passava de carro pela dr. Arnaldo, e ao reparar nas construções acima do muro do cemitério, lançou a sua(perspectiva):
- Olha pai... Um condomínio de mini-igrejinhas!
Perfeita a descrição. São tantas torres, cúpulas, Cristos e Virgens Marias que o lado subterrâneo do cemitério passa até despercebido. Impossível não se interessar pela arquitetura das tais mini-igrejinhas. E embora haja uma certa predominância do arcaico no condomínio dos mortos, felizmente não tem nada a ver com o neo-clássico brega que infesta os condomínios de vivos. No Araçá, construções góticas, vitrôs coloridos e azulejos portugueses convivem com alguns monumentos e mausoléus mais modernosos.
Agora, a melhor descoberta que esse enterro me deu foi a descoberta da curiosa literatura post-mortem. Muito curiosa. Dentre as milhares de homenagens póstumas que os saudosos parentes grafam nos túmulos, algumas são verdadeiras perólas. Pena que muitas já tenham escapado à memória. Lembro bem das longas despedidas, várias em tom dramático, quase todas afirmando que sim, trata-se mesmo de despedida, porém sem crises, daqui a gente já se vê por aí. Alguns poucos epitáfios se destacavam pelo teor enxuto. Breves declarações de amor do tipo: “Osório, mamãe te amará pra sempre. Fica com Deus, meu filho.” – e pronto, palavras econômicas não raro dizem mais.
Como o cemitério é o segundo mais antigo da cidade e está num bairro da elite, prevalecem os textos longos e empolados de doutores do início do século passado. Clima de museu ao ar livre. Só o que jamais imaginei encontrar nos epitáfios era humor negro. Dá pra acreditar num negócio desses? Pois é. Havia uma mensagem lá que eu simplesmente não pus uma fé. Impossível esquecê-la. Lia-se, cravado na lápide:

SAULO ERA UM JOVEM INTRÉPIDO QUE ADORAVA AUTOMÓVEIS RELUZENTES.
GOSTAVA DE TODOS OS TIPOS DE CARRO.
2.0
1.8
1.6
1.4
1.0
um ponto final

Tio Armandinho.

Tá na cara que esse tal de Tio Armandinho é um gozador de marca maior, só que do gênero “sem limites”. O tipo de sujeito que não respeita ninguém, zomba até da autoridade da morte. Primeiro lugar: quem garantiu a Tio Armandinho que a vida é o ponto final? E se de repente, o ponto final não seria só mais um recomeço? Afinal, se formos pensar em termos puramente estatísticos, há 50% de chance que ele esteja errado (ou certo). Outra coisa. Do jeito como Tio Armandinho escrevera, ficou uma sugestão implícita de que só porque o sobrinho adorava carros e possuía uma mente intrépida, um automotor do tipo reluzente o levara à morte. Isso até pode e deve ser a mais pura verdade. Ma pera lá. Colocar no túmulo do cara?
Moral da história: esse tio Armandinho é um mala.

2 comentários:

  1. Fala paulo. Tô com saudades daquele nosso teppan yaki na rua da Glória. Qqr. hora eu apareço por aí, desta vez pra tomar junto o saquê.
    Grande abraço

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