quarta-feira, 15 de junho de 2011

MAURO E TARSILA

Conheceram-se no inglês. A primeira vez que a moça o ouviu falar alguma coisa foi nessa língua. Não era um adolescente propriamente bonito, mas achou graça em sua pronúncia, no olhar difuso de quem está e não está. Havia, enfim, toda uma presença de espírito no rapazinho que desde o princípio chamara a sua atenção. Já Tarsila era a pérola com a qual todos os garotos sonhavam cortejar. Assediada pelo mestre de capoeira do bairro, e no entanto o desprezou. Recebeu poemas e declarações apaixonadas de Túlio, que tinha helicóptero particular e casa nas Laranjeiras, mas também por ele nunca se interessou. Certa vez, a professora de inglês propôs um exercício em duplas e escolheu ao acaso os dois para trabalharem juntos. As bochechas do rapaz coraram imediatamente, e foi aí que ela descobriu: nada pode ser mais atraente do que um homem tímido por sua causa. Assim que a aula acabou, Mauro até tentou prolongar o assunto, ir além dos phrasal verbs, mas as mãos suavam, e as falas, ensaiadas, atropelavam-se antes mesmo de deixarem os pensamentos. Para a aula seguinte, resolveu tomar uma decisão. Redigiu uma carta na língua de Shakespeare, recheada de clichês e metáforas sentimentais. No intervalo da aula, após muito sofrimento, reuniu coragem e enfiou o papelote dobrado no bolso externo da mochila de Tarsila. No minuto seguinte pegou-o de volta, renunciando por completo à ideia, convicto de que um homem de verdade não carece das letras para se esconder. Na aula seguinte ela não foi. Escarlatina. Foi reaparecer só na outra semana, na hora do intervalo, de mãos dadas com um sujeito mais velho, um tipo excêntrico, cheio de brincos no nariz e uma camiseta com o rosto do trapalhão Mussum, escrita “Ô do Jabá!”. Mauro soube depois que se tratava de um músico, baixista duma banda de rock progressivo, famoso no bairro quando, em sua festa de aniversário, distribuiu uma jarra de suco de lichia com docinhos sintéticos misturados ao gelo. Vê-la com outro fê-lo sentir-se a pessoa mais insignificante do mundo. O garoto chegou a pedir aos pais para o tirarem do inglês, sob a alegação de que o método de ensino da escola era ruim e não favorecia o aprendizado. A mãe atendeu à solicitação do filho, sensibilizada por não ser de seu feitio pedir para deixar de estudar alguma coisa.
Transcorreram-se seis anos para que o acaso pusesse Mauro e Tarisla em contato novamente. Foi no parque, numa tarde nublada, ela fazendo cooper com o dálmata; ele sozinho, também correndo, de cabelo curtinho, corpanzil atlético, quase irreconhecível. Ela sem namorado, ele começando a engatar uma história com uma garota da mesma academia. Ao se deparar novamente com Tarsila assim, tão inusitadamente, passado tanto tempo, curioso que a tenha cumprimentado com tamanha naturalidade, como se fosse ontem a última vez, como se fossem muito mais íntimos do que de fato eram. Papearam à beça, e em pouco tempo descobriram inúmeros gostos em comum. Mauro descobriu ainda que o tempo só lapidara aquilo que já era bom em Tarsila. Marcaram encontro para a mesma noite num pub irlandês perto da Paulista, ocasião em que a garota contou sobre as aulas que dava aulas de flamenco, e ele, bem brevemente, mencionou estar no último ano do ITA, com planos de seguir a carreira de astronauta. Encontraram-se várias vezes depois disso. Adoravam passar madrugadas assistindo comédias italianas do tipo pastelão, às vezes se viam só para conversar, dividir alguma angústia, ela bem mais do que ele, mas em qualquer circunstância a presença de um sempre confortava a do outro. Para ele, nada no mundo era mais belo do que vê-la dançar e tocar castanholas ao som de Camarón de La Isla ou Paco de Lucia. No entanto, por alguma incógnita razão, nunca se permitiam um vínculo maior, que de fato os alçasse à condição de compromissados. Ficavam meses seguidos sem se ver, e de repente, ela ligava pra ele, viam-se no minuto seguinte e passavam juntos o resto da semana, curtindo aquela intensidade que não se perdia com o tempo. A noite anterior à ida de Tarsila para Madrid foi a última vez que se viram. Não transaram. Abraçaram-se muito e choraram, como se já pressentissem ser aquela a última vez. Tarsila estabeleceu-se na Espanha, sagrando-se excelente dançarina. Nunca se casou. Viveu com três homens e morreu ao lado do último, num acidente de carro banal. Mauro se casou com uma colega de trabalho, com quem teve um casal de gêmeos. Há um mês atrás ele recebeu convite para assumir a diretoria de uma multinacional francesa que fabrica aviões, mas preferiu ficar na Embraer, perto da família. Nunca soube da morte de Tarsila. Dela, guarda apenas memórias de uma grande amizade, e a cartinha em inglês, que nunca teve coragem de revelar.

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