segunda-feira, 27 de junho de 2011

RATICÍDIO

Entre as principais desvantagens da casa sobre apartamento, as mais lembradas costumam ser a questão da segurança e o alto custo da manutenção. Particularmente, discordo de serem essas as principais. Nada, absolutamente nada pode ser pior do que estar ao nível do solo, próximo das bocas de lobo e de seus imundos habitantes. Se houve um momento inglório no processo de criação da natureza, foi quando se decidiu introduzir os ratos na cadeia alimentar. Tal ficha começou a me cair há exatos dois meses atrás, quando levei a primogênita para adquirir um novo bichinho de estimação na Cobase, e ela decidiu pelo hamster. Felizmente pra mim, infelizmente pra ela, a brincadeira durou apenas um final de semana. Tempo mais que suficiente para eu já formasse a seguinte crítica: com ou sem rabicó, nada mais asqueroso que os ratos. Devido, porém, a uma forte crise de sensibilidade da menina logo após o óbito, que na pausa do choro, desabafava: agora eu sei o que é perder uma pessoa querida... Decidimos tentar novamente. Um casal de roedores sírios que, ainda mais tragicamente, não durou sequer o final de semana. Na manhã seguinte lá estavam os dois, duros, desencarnados e afundados no feno da gaiola. Outra choradeira, agora seguida de um discurso mais ríspido: vamos pedir o dinheiro de volta, não está certo fazer isso com as crianças..

Um mês se passou desde a segunda fatalidade e a cidade de São Paulo se encarregou de acabar com o problema da minha filha e criar outro grande (problema) para mim. Quando você acorda de manhã, desce para tomar café da manhã e se depara com um rastro de cocozinhos no balcão da cozinha, seguido de uma goiaba e duas mangas completamente roídas na cesta de frutas; inicialmente, a vontade que se tem é de chorar. Mas aí vem os calafrios pelo corpo, e o sentimento de nojo se une ao senso policialesco: onde o canalha estará escondido? Será que já foi ao meu quarto? Na noite do mesmo dia graduei-me PhD no assunto. Descobri que em São Paulo habitam três espécies de roedores: as terríveis ratazanas, os ratos de telhado e os camundongos domésticos. Esse último é o único que tem a pachorra de esbulhar o interior de nossas residências para, na maior cara de pau, compartilhar de nossas despensas. Vivem pouco, mas enquanto respiram, não perdem tempo. Praticam sexo compulsivamente, gostam de doces, castanhas e vida mansa. Como todo ser inclinado ao carpe diem, é também impulsivo, extremamente curioso, o que facilita um pouco a vida daqueles que querem vê-lo morto. E se a internet é rica em informações científicas sobre o bicho e seus hábitos; já em relação às técnicas de extermínio, a melhor fonte ainda é o velho e bom “boca a boca”. Desde a aparição do bicho, ouvi milhares de histórias sobre o melhor jeito de matar ratos. Todo mundo que mora ou já morou em casa (não em apartamento) viveu alguma experiência parecida, e taí o tipo de história que as pessoas adoram contar. Algumas são hilárias, outras interessantes, em todas, porém, não conseguia me ver como seu protagonista. Sinceramente? Não é papo de pseudo-vegetariano simpatizante do budismo. Vai contra minha natureza retirar a vida de animais, em especial a daqueles que por tradição resistem a que isso aconteça. Quando soube ainda que os ratos fazem caretas intimidadoras, ou pior, contra-atacam o executor... Desisti. Não era um roedor pequenino o que você queria, Maricota? O instinto raticida só foi retomado cinco dias depois, quando convidamos um casal de amigos. para um churrasco argentino. Os dois são super legais, mas vivem numa realidade um pouco diferentes da nossa. Ele é milionário, e ela também, é super bacana, mas enfim, a mulher do milionário. Como sempre o casal foi super elegante nos trazendo um vinho de Borgonha, daqueles que não sai a menos de R$200. Então, quando parei de servir o bife de chorizo regado a chimichurri, já sentado na mesa da sala tendo como primeiro ângulo de visão os dois convidados, ao fundo a escada dos quartos, eis que vejo o mickey descendo os degraus no maior pinote, com aquela barriga nojenta sacolejando pra cima e pra baixo, esforçando-se para não derrapar no piso de cimento queimado. Pus a mão na cabeça e gritei:

- Filha da..

- Que foi? - o casal, de costas para escada.

- A cadeira, esta cadeira está um perigo.

Ufa, virou em direção à área de serviço, fugindo da sala. Depois, já no final da visita, outro momento de pura tensão. A minha cadela cometeu a deselegância de entrar junto com a mulher do milionário no lavabo. Falei pronto. Agora só falta o mickey estar lá de pé, fuçando o lixinho. Não estava, mas o trauma ficou no ar. Lá pelas quatro da madrugada, sonhei que vários ratos invadiam a casa pelos vãos do portão da garagem. Acordei tendo a certeza absoluta de que um deles andava sobre meu pescoço, o que me levou a gritar desesperado:

- Ahhhhh – O quê? – Tem um em cima de mim, subiu em cima de mim. - Que rato o quê! - a cônjuge, depois de acordar assustada. Levamos um tempo para reduzir as batidas cardíacas e voltar a dormir.

Como disse, depois do episódio tive que encarar o problema de frente e dar um jeito de me livrar do canalha. Diante de tantas opções assassinas, decidi encampar o estratagema da moça que trabalha para a minha irmã. Trata-se de técnica elaborada, que ainda por cima exige um certo sangue frio do executor. Como o local preferido dos camundongos é a traseira do fogão, ou dentro dele (local quentinho), se você ligar o forno, obviamente o calor passa da conta e o bicho é impelido a partir para outros cantos. Então, antes de esquentar o forno, você já fecha todas as portas da cozinha, pega um pano grande - e o mais importante - já vai colocando uma panela para ferver água. Quando o rato sair do esconderijo, você não perde tempo: arremessa o pano em cima dele, pega a panela de água fervida e faz o mesmo: arremessa no bicho preso pelo pano. Uma vez que ele ficará desnorteado, mas não chegará exatamente a falecer; deve-se pisoteá-la para garantir a consumação do ato. A principal vantagem da técnica reside na morte, que literalmente sairá por baixo do pano. Sim, o cadáver poderá ser removido sem sequer ser visto. O único impasse é a parte da pisoteada. Pensando bem, eu seria incapaz de fazer isso. Nem com a botina de petroleiro que o pessoal da refinaria me deu. Cogitei então do uso de chumbinho. Para quem desconhece, um veneno letal proibido depois que algumas mulheres traídas, muito criativas, começaram a lhe dar outros usos como misturar na jantinha dos maridos. Achar o veneno no mercado negro nem é o problema. A desgraça é que o chumbinho não causa morte instantânea e o bicho procura um lugar mais intimista, preferencialmente de difícil acesso, para aí sim dar o último suspiro. Dizem então que exalará um cheiro ruim durante dias, em alguns casos sem que nada se possa fazer para evitar. Resolvi apelar então para a tradicional ratoeira, que é mais ou menos como usar preservativo para prevenir gravidez. Em tese funciona, embora inúmeras variáveis possam frustrar o seu objetivo. De toda sorte, com a decisão tomada, espalhei pela cozinha três guilhotinas em formato miniatura, e apreensivo, subi para o meu aposento. Na cama rolando, não pensava noutra coisa a não ser no som do estalo vindo da sala, anunciando o timing exato da execução. Talvez porque meu sono seja sempre pesado, só não naquela noite, ouvi o barulho, não da ratoeira, um vindo da janela virada para o fundo da casa. Iiiic, iiic, iiiic... Pronto, pensei: é o mickey. Que diabos estará fazendo? Passando um rádio aos comparsas? Seguinte galera, cheguem mais porque hoje tem até queijo brie no chão da sala... O problema da falta de discrição é que às vezes ela pode ser fatal. Ao invés de atrair somente os seus pares, no quintal do vizinho, a gata ouriçou os pêlos e se espreitou em cima do muro. O felino desceu matreiro pelo tronco da pitangueira, escondendo-se na forração de dinheirinho, que depois das chuvas ficou bem alta. De repente, após minutos de silenciosa tensão, enfim o bote. Um barulho horrível seguiu-se a uma enorme correria pelo jardim. Durou pouco, mas foi impressionante. Esganiçados infinitamente mais agressivos do que aqueles que os gatos emitem na relação sexual. Não sei dizer se o raticídio se consumou. Sei que desde então os rastros do bicho sumiram. Sem mais cocozinhos ao redor do fogão e da pia, os queijos da ratoeira ficaram para as formigas. Inclusive, na manhã pós caçada, descobri que embaixo da pia da cozinha, ao lado do sifão, havia um monte de jornal picotado que mais parecia uma cama do menino Jesus no presépio. Isso mesmo. O bicho tinha planos de constituir família ao lado das panelas. Felizmente, passara-se um mês e esses planos também não foram mais retomados. Felizmente, é só na ficção que o Jerry se dá melhor que o Tom.

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