quinta-feira, 30 de junho de 2011

O PRIMEIRO TRABALHO A GENTE NUNCA ESQUECE

O PRIMEIRO TRABALHO A GENTE NUNCA ESQUECE

Elaborar um relatório de todas as atividades no começo do mês. Carregar pra lá e pra cá pilhas de processos. Casualmente, elaborar ofícios a outros órgãos públicos sujos e anacrônicos. Rascunhar despachos ministeriais padronizados. Carimbar folhas velhas de papel. Manuscrever (não digitar) centenas de nomes e números sem qualquer sentido no livro-carga de autos. E por fim, atender ao balcão das lamúrias.
Atender ao balcão era a cereja do bolo. Aquele móvel velho que separava a minha mesa do público era uma espécie de imã para a loucura. Posso estar exagerando, mas tinha a perfeita sensação de que todas as pessoas mais piradas que iam ao Fórum Central se sentiam atraídas a terminar prostradas no balcão, defronte à minha mesa. Algumas figuras lendárias batiam ponto na sala 324, como um albino de cabelo armado que jurava ter sido abduzido na madrugada anterior. Meus colegas de repartição morriam de medo quando surgiam essas figuras muito fora da curva, mas, pessoalmente, confesso: adorava dar trela às histórias e ouvir até onde iam os limites da insanidade humana. Abduzido é? E o cara começava a sustentar, cheio de propriedade, descrevendo a cena nos mínimos detalhes. Daí te levaram pra dentro da nave? E quantos eram? Mais de dez? Tinha uma ET que era gatinha? Não acredito! Agora só falta você me dizer que a ET fez contigo algo mais do que só abduzir?
O primeiro trabalho a gente nunca esquece. Pelo fato de trabalhar na seção de conflitos familiares, uma cena muito comum era o pai entrar na sala junto com a filha adolescente embuchada, e bater a mão no balcão:
- E aí moço? O que faço agora? Hã? Quer dizer que ela abre as pernas para um pé rapado qualquer...
- E agora sou eu que pago a conta?
- É justo?
Tinham também os loucos perigosos. Certa vez entrou um daqueles com gramíneas no cabelo e cecê acumulado ao longo de no mínimo duas semanas, e que na maior naturalidade já chegou intimando:
- Cadê o juiz corregedor? Quero falar com ele. Ele está?
- Sobre o quê, senhor?
- É que depois de quase 30 anos aí pagando cana no interior, saí esses dias, voltei pra rua, e sabe como é né, tô querendo ficar só na moral, mas os segurança lá da rua não tá deixando eu cuidá dos carro dos bacana.
- E?
- E eu quero falar com o juiz corregedor aí pra vê se o homem resolve as minhas treta, porque se não, vou ter que voltar a delinqüir, cê tá me entendeno?
Pausa. Quase trinta anos, "cumprindo” cadeia? No Brasil? Deve ter sido condenado a uns 150 anos na sentença, e na cadeia devia asfixiar um por mês. Detalhe: era bem cedo. Só estávamos eu e ele na sala.
- Mas por que o senhor não experimenta cuidar de carros em outras ruas? – sugeri na maior das boas vontades.
- Tá louco? Toda rua já tem o seu flanelinha – enervado. – Peraí? É você que é o juiz corregedor?
- Não.
- Então chama logo o cara, se não eu vou ter que voltá a delinqüi. – lacrimejando os olhos.
Orientei-o a se dirigir ao vigésimo andar do prédio, onde ficava a Corregedoria Geral da Justiça. Felizmente, o sujeito se convenceu de que era para lá onde deveria ir e resolver o seu problema pontual. Mas passei uma semana pensando nele e no país louco em que vivemos.
Outro ilustre personagem que batia cartão no Fórum era uma anciã, filha de emigrantes ingleses fugitivos da primeira guerra. A velhinha atribuía a si o título de primeira sexóloga do Brasil. A senhorinha gostava de mim, já chegava me chamando pelo nome, tudo porque eu saía de braços dados com ela pelo saguão dos elevadores. Enfim, apesar de sua idade bem avançada, havia um jovenzinho de vinte e poucos que ainda a tratava como uma dama. Um dia a idosa chegou e me disse:
- Nunca se case menino. Transe à vontade, casar nunca!
- Por quê?
- Porque só tem carreirista nesse mundo! Só perdigueira oportunista...
Havia quase vinte anos que a auto-intitulada primeira sexóloga do Brasil batia às portas da Justiça para pedir pensão contra o filho, que esperava até o último minuto, quando saía o mandado de prisão, para aí sim depositar a dívida, segundo a mãe por causa da nora, uma maquiavélica que fizera lavagem cerebral nele e causou a ruptura entre os dois. Daí toda a mágoa da velha com as mulheres e com o casamento. Apesar desse motivo ácido que a levava até minha sala, a sexóloga também era uma figura genuína, com um lado bem divertido. Sempre trazia alguma novidade insólita, como a foto em P&B dela de seios desnudos na Sapucaí, numa época em que isso era crime de atentado violento ao pudor.
Agora, sem dúvida alguma o sujeito mais insano que apareceu no balcão das lamúrias foi um jovem magricelo de olhos arregalados que entrou na sala, e ao me aproximar do balcão para atendê-lo, ele começou:
- Sabia que eu sou um fantasma?
Até aí normal. Àquelas alturas eu já tinha alguns anos de Fórum, essas declarações estapafúrdias nem me impressionavam mais. Até que o gasparzinho continuou:
- Eu vou matar o juiz da 4ª Vara! Amanhã o doutor Laureano vai amanhecer comendo formiga!
- Calma, senhor. Diga qual o seu problema e vejo se posso ajudar...
Jogou sobre o balcão um saco plástico contendo milhares de documentos velhos para justificar as intenções homicidas. Mostrava uma infinidade de escrituras, termos e contratos que supostamente atestavam a sua condição de herdeiro de uma grana preta. Acontece que a herança estava toda enrolada, dessas cujo patrimônio foi amealhado em cima de corrupção, lavagem e outras origens ilícitas, e que agora, segundo o fantasma, estaria na mira de advogados, empreiteiras e magistrados, todos bem dispostos a lotear um quinhãozinho no imbróglio. Por causa disso, o único herdeiro legítimo – ele - estava temerário de que não lhe sobraria nem um cafezinho.
- Ó aqui ó...
Levantou a blusa, mostrando marcas de quatro balas cravadas entre o peito e as costas.
- Tem uma pá de neguinho aí querendo me derrubar, sabia?
- E como posso ajudá-lo em relação a isso?
- Não sei. Só sei que amanhã eu vou matar o doutor Laureano.
- Matar um juiz pode ser algo perigoso.
- Perigoso? Você lá sabe o que é perigoso?
Aí o cabra pegou pesado. Abriu uma pastinha azul e tirou uma foto de centenas de cobras tomando sol numa pedra. De acordo com o nauseabundo, a pedra da foto ficava numa ilha chamada Queimada Grande, entre Peruíbe e Itanhaém. Já aquelas serpentes, que no mundo todo só habitavam a tal da ilha no litoral paulista, estariam entre as peçonhentas mais venenosas do mundo, se não as mais (se duvida, procura no Google a jararaca-ilhoa).
- E eu fui picado por elas!
- É mesmo?
- Fui..
- E aí?
- Aí passei dois meses agonizando sozinho na cama. Suava frio dia e noite. Fiquei esse tempo todo sem saber o que é dormir uma noite inteira.
- E aí?
- Aí perdi todos os dentes da boca.
Pah.
Arremessou a dentadura sobre o balcão.
E deu-me um sorrisinho banguela.
Como ia dizendo, o primeiro trabalho a gente nunca esquece.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

BANDINHA DE GARAGEM?

Num churrasco de pós-adolescentes, Birigui sentou-se ao meu lado e uma garota o perguntou:
- E aí Birigui? Que cê anda fazendo da vida?
Essa pergunta foi feita há pelo menos quinze anos. É realmente curioso que eu recorde perfeitamente da resposta até hoje:
- Pô, tô aí fazendo arquitetura na Unip, mas minha parada não é ser arquiteto não. O meu negócio é ser cantor de banda de hardcore..
- E eu vou ser cantor!
Birigui sempre fora uma pessoa tão curiosa quanto o seu apelido. Baixinho, forte, boné inseparável, na adolescência gastava manhãs, tardes e noites dedicando-se às duas coisas que mais gostava de fazer: andar de skate na pista do clube e cantar nos ensaios de sua banda de garagem. Em meu singelo parecer, Birigui era excelente skatista, mas péssimo cantor. Sendo assim, quando nos encontrávamos ao acaso em festinhas (nunca fui íntimo da peça), mas como ele sabia que eu ouvia Ramones, Toy Dolls e Sex Pistols, então vinha me perguntar: E aí Vitinho? O que você está achando do nosso som? E na maior cara de pau eu respondia que sua banda estava cada vez melhor, a cada dia mais madura artisticamente. Diante dos elogios, Birigui não tinha o menor pudor de revelar as suas aspirações estratosféricas. Para ele, os holofotes eram apenas uma questão de tempo, logo, por que esconder as suas certezas? Além de mega-sonhador, Birigui era mega-insistente. Namorava uma menina bonita, cujo pai era dono de gravadora, e embora conste pelas más línguas que o sogro desgostasse do genro, Birigui vivia insinuando ao sogrão para levá-lo a estúdio, pois se lhe dessem uma única chance, decerto provaria todo o seu potencial. Lembro, numa festa à fantasia, quando uma amiga fantasiada de fada Sininho tomou todas e foi parar nos braços do Birigui de sonho de valsa. No dia seguinte, a ressaca não lhe incomodava tanto quanto o arrependimento.
Alguns anos depois, fui ao Fórum Central e dia dei de cara com outro personagem curioso, esse até então um desconhecido de mim: Chininha. Lembro perfeitamente de nos encontrarmos na escadaria do prédio, e sem que ninguém nos apresentasse, cumprimentamos um ao outro como se já fôssemos brothers de longa data. Chinhinha era um mestiço boa pinta, sempre muito bem acompanhado, uma pessoa finíssima, educada, elegante, com uma história de vida interessante. Era formado em turismo na USP, administração na PUC, mas à noite dava aulas de inglês e de dia trabalhava como cartorário da Infância e da Juventude, sendo que neste último caso, alegava o rapaz, era para fazer algo em prol do “social”. Já nas horas vagas, não me pergunte como, China ainda arrumava tempo para ser o baterista de duas bandas de garagem. Uma que ele levava como projeto comercial, a outra por prazer de tocar com os amigos.
Tempos depois, um amigo meu de colégio, hoje jornalista e músico, veio me contar a bomba: Chininha, aquele cara gente boníssima com quem eu ia almoçar no vegetariano da rua Riachuelo, sim, era ele mesmo o baterista da banda do Birigui. Simplesmente não pude acreditar. Um era culto, discreto e polido. O outro? Um escachado que não parava de rir das asneiras que ele próprio não parava de falar. Sabe aquele eterno adolescente skatista acometido da síndrome de Peter Pan? A primeira vez que comentei com Chininha sobre o fato de conhecer Birigui, não tive coragem de expressar todo o meu estranhamento sobre o fato de duas figuras tão diferentes fazerem parte do mesmo coletivo musical.
Algum tempo depois, o mesmo amigo jornalista veio me dar nova bomba: Sabe a banda dos caras? Sim, claro. Pois é. Um produtor musical da pesada pegou pra lançar. Anota aí. Nesse verão, várias rádios de São Paulo vão começar a tocar o som da banda e eles vão se dar bem. Profeticamente (ou talvez não), foi exatamente o que aconteceu. Dali a um tempo, eu ia sintonizar a Eldorado FM no carro, e de repente passava por alguma rádio do tipo mix FM ou 89.1 que estava lá, prestigiando os batuques do Chininha e a voz rouca do Birigui. Num período bem curto, a banda estourou nas paradas de sucesso, tornando-se uma das pioneiras no gênero “emocore”. Birigui, Chininha e companhia arrastavam multidões teens para os estádios, que se descabelavam cantando junto os hits da banda. Bastava eu me encontrar novamente com o amigo jornalista para ouvir as boas novas incrédulas. Diversão garantida. Agora o Birigui tinha um fã-clube com milhares de garotas espalhadas pelo Brasil. Mas o auge mesmo da banda foi no dia da festa de 40 anos da rede Globo. Diante duma platéia em que Tarcísio Meira e Glória Menezes eram os menos conhecidos, quem subiu no palco para cantar? Birigui! Foi surreal vê-lo interpretar Legião Urbana, e ao final, despedir-se gritando no microfone: - Valeu Rede Globo! Eu me divertia com a cena, lembrando daquele ex-sogro, o dono de gravadora que sempre se recusou a dar uma chance ao menino...
Já com a fama da banda estabelecida, de vez em quando eu ainda cruzava o Chininha batendo o cartão no relógio velho do Fórum: - E aí meu? O que você tá fazendo aqui? - Pô, sabe como é, eu gosto do cartório, aqui eu me sinto servindo a sociedade... Lógico que às alturas China faltava bem mais do que ia ao serviço, e não levou muito tempo para se despedir de vez do funcionalismo. Pelo que ouvi de inúmeras fontes (pode ser só fofoca infundada) Chininha era o cérebro da banda, a liderança natural dentro e fora dos palcos. Diziam ser ele quem compunha a maioria das canções, cujas temáticas oscilavam entre a desilusão amorosa e o destino fatal da humanidade. Era também o cara das relações públicas, quem sempre arrumava alguma paciência para atender jornalistas ou dar atenção aos fãs. Sabia da importância dessas coisas para a longevidade da banda. Por ser também um cara estiloso e carismático por natureza, todo ano no MTV Awards Brasil ele era eleito pelo público da emissora como o baterista na categoria “Banda Ideal”. Imagino que isso devia gerar uma certa angústia em Birigui, pois o mesmo nunca se dava com ele, que era o vocalista da banda, o cara do front, ao passo que o outro era só o baterista, quem fica na parte mais escondida do palco.
A fase fértil durou bem mais do que eu imaginei logo no começo. Foram quase 10 anos de viabilidade comercial. Nesse período, ao que soube (pode ser só fofoca infundada), Chininha guardou toda a grana, enquanto a maioria da banda torrou tudo em baladas pelas turnês. Recentemente, a última investida do mestiço no mundo das artes foi o lançamento de um livro reunindo as crônicas que ele costumava publicar numa revista feminina para adolescentes. O título da obra: “O que os garotos pensam sobre as meninas, na visão de um rock-star”. Li na internet que as vendas foram muito bem e a editora já estava lhe cobrando um segundo livro. Indagado sobre as razões para o êxito literário, China respondeu que formulava os conselhos para as meninas, mas antes de publicá-los ponderava se os daria também para uma irmã mais nova, caso tivesse. É ou não um gentleman?
Já Birigui – pasmem - parou de beber, casou-se e agora tem planos de se tornar pai. Fui saber disso não pelo amigo jornalista, desta vez pela minha mãe mesmo, que fez o buffet da festa de casamento e ouviu essas pérolas da boca do próprio. Eis aí um evento que lamento não ter sido convidado para testemunhar ao vivo e em cores. O casamento religioso do Birigui. Apesar de nossos universos digamos, um pouco distantes, sempre achei Birigui um cara do bem, no mínimo autêntico. A última vez que nos vimos foi no Mercearia São Pedro, ainda na fase áurea da banda. Ele foi super simpático comigo e com minha filha.
Moral da história nº 1: Birigui é a prova de que sim, TUDO é possível, basta acreditar intensamente, os livros de auto-ajuda estavam certos.
Moral da história nº 2: Se é Deus mesmo quem vem contando as atuais 7 bilhões de histórias do mundo, além de todas as passadas, convenhamos então - haja criatividade!

segunda-feira, 27 de junho de 2011

RATICÍDIO

Entre as principais desvantagens da casa sobre apartamento, as mais lembradas costumam ser a questão da segurança e o alto custo da manutenção. Particularmente, discordo de serem essas as principais. Nada, absolutamente nada pode ser pior do que estar ao nível do solo, próximo das bocas de lobo e de seus imundos habitantes. Se houve um momento inglório no processo de criação da natureza, foi quando se decidiu introduzir os ratos na cadeia alimentar. Tal ficha começou a me cair há exatos dois meses atrás, quando levei a primogênita para adquirir um novo bichinho de estimação na Cobase, e ela decidiu pelo hamster. Felizmente pra mim, infelizmente pra ela, a brincadeira durou apenas um final de semana. Tempo mais que suficiente para eu já formasse a seguinte crítica: com ou sem rabicó, nada mais asqueroso que os ratos. Devido, porém, a uma forte crise de sensibilidade da menina logo após o óbito, que na pausa do choro, desabafava: agora eu sei o que é perder uma pessoa querida... Decidimos tentar novamente. Um casal de roedores sírios que, ainda mais tragicamente, não durou sequer o final de semana. Na manhã seguinte lá estavam os dois, duros, desencarnados e afundados no feno da gaiola. Outra choradeira, agora seguida de um discurso mais ríspido: vamos pedir o dinheiro de volta, não está certo fazer isso com as crianças..

Um mês se passou desde a segunda fatalidade e a cidade de São Paulo se encarregou de acabar com o problema da minha filha e criar outro grande (problema) para mim. Quando você acorda de manhã, desce para tomar café da manhã e se depara com um rastro de cocozinhos no balcão da cozinha, seguido de uma goiaba e duas mangas completamente roídas na cesta de frutas; inicialmente, a vontade que se tem é de chorar. Mas aí vem os calafrios pelo corpo, e o sentimento de nojo se une ao senso policialesco: onde o canalha estará escondido? Será que já foi ao meu quarto? Na noite do mesmo dia graduei-me PhD no assunto. Descobri que em São Paulo habitam três espécies de roedores: as terríveis ratazanas, os ratos de telhado e os camundongos domésticos. Esse último é o único que tem a pachorra de esbulhar o interior de nossas residências para, na maior cara de pau, compartilhar de nossas despensas. Vivem pouco, mas enquanto respiram, não perdem tempo. Praticam sexo compulsivamente, gostam de doces, castanhas e vida mansa. Como todo ser inclinado ao carpe diem, é também impulsivo, extremamente curioso, o que facilita um pouco a vida daqueles que querem vê-lo morto. E se a internet é rica em informações científicas sobre o bicho e seus hábitos; já em relação às técnicas de extermínio, a melhor fonte ainda é o velho e bom “boca a boca”. Desde a aparição do bicho, ouvi milhares de histórias sobre o melhor jeito de matar ratos. Todo mundo que mora ou já morou em casa (não em apartamento) viveu alguma experiência parecida, e taí o tipo de história que as pessoas adoram contar. Algumas são hilárias, outras interessantes, em todas, porém, não conseguia me ver como seu protagonista. Sinceramente? Não é papo de pseudo-vegetariano simpatizante do budismo. Vai contra minha natureza retirar a vida de animais, em especial a daqueles que por tradição resistem a que isso aconteça. Quando soube ainda que os ratos fazem caretas intimidadoras, ou pior, contra-atacam o executor... Desisti. Não era um roedor pequenino o que você queria, Maricota? O instinto raticida só foi retomado cinco dias depois, quando convidamos um casal de amigos. para um churrasco argentino. Os dois são super legais, mas vivem numa realidade um pouco diferentes da nossa. Ele é milionário, e ela também, é super bacana, mas enfim, a mulher do milionário. Como sempre o casal foi super elegante nos trazendo um vinho de Borgonha, daqueles que não sai a menos de R$200. Então, quando parei de servir o bife de chorizo regado a chimichurri, já sentado na mesa da sala tendo como primeiro ângulo de visão os dois convidados, ao fundo a escada dos quartos, eis que vejo o mickey descendo os degraus no maior pinote, com aquela barriga nojenta sacolejando pra cima e pra baixo, esforçando-se para não derrapar no piso de cimento queimado. Pus a mão na cabeça e gritei:

- Filha da..

- Que foi? - o casal, de costas para escada.

- A cadeira, esta cadeira está um perigo.

Ufa, virou em direção à área de serviço, fugindo da sala. Depois, já no final da visita, outro momento de pura tensão. A minha cadela cometeu a deselegância de entrar junto com a mulher do milionário no lavabo. Falei pronto. Agora só falta o mickey estar lá de pé, fuçando o lixinho. Não estava, mas o trauma ficou no ar. Lá pelas quatro da madrugada, sonhei que vários ratos invadiam a casa pelos vãos do portão da garagem. Acordei tendo a certeza absoluta de que um deles andava sobre meu pescoço, o que me levou a gritar desesperado:

- Ahhhhh – O quê? – Tem um em cima de mim, subiu em cima de mim. - Que rato o quê! - a cônjuge, depois de acordar assustada. Levamos um tempo para reduzir as batidas cardíacas e voltar a dormir.

Como disse, depois do episódio tive que encarar o problema de frente e dar um jeito de me livrar do canalha. Diante de tantas opções assassinas, decidi encampar o estratagema da moça que trabalha para a minha irmã. Trata-se de técnica elaborada, que ainda por cima exige um certo sangue frio do executor. Como o local preferido dos camundongos é a traseira do fogão, ou dentro dele (local quentinho), se você ligar o forno, obviamente o calor passa da conta e o bicho é impelido a partir para outros cantos. Então, antes de esquentar o forno, você já fecha todas as portas da cozinha, pega um pano grande - e o mais importante - já vai colocando uma panela para ferver água. Quando o rato sair do esconderijo, você não perde tempo: arremessa o pano em cima dele, pega a panela de água fervida e faz o mesmo: arremessa no bicho preso pelo pano. Uma vez que ele ficará desnorteado, mas não chegará exatamente a falecer; deve-se pisoteá-la para garantir a consumação do ato. A principal vantagem da técnica reside na morte, que literalmente sairá por baixo do pano. Sim, o cadáver poderá ser removido sem sequer ser visto. O único impasse é a parte da pisoteada. Pensando bem, eu seria incapaz de fazer isso. Nem com a botina de petroleiro que o pessoal da refinaria me deu. Cogitei então do uso de chumbinho. Para quem desconhece, um veneno letal proibido depois que algumas mulheres traídas, muito criativas, começaram a lhe dar outros usos como misturar na jantinha dos maridos. Achar o veneno no mercado negro nem é o problema. A desgraça é que o chumbinho não causa morte instantânea e o bicho procura um lugar mais intimista, preferencialmente de difícil acesso, para aí sim dar o último suspiro. Dizem então que exalará um cheiro ruim durante dias, em alguns casos sem que nada se possa fazer para evitar. Resolvi apelar então para a tradicional ratoeira, que é mais ou menos como usar preservativo para prevenir gravidez. Em tese funciona, embora inúmeras variáveis possam frustrar o seu objetivo. De toda sorte, com a decisão tomada, espalhei pela cozinha três guilhotinas em formato miniatura, e apreensivo, subi para o meu aposento. Na cama rolando, não pensava noutra coisa a não ser no som do estalo vindo da sala, anunciando o timing exato da execução. Talvez porque meu sono seja sempre pesado, só não naquela noite, ouvi o barulho, não da ratoeira, um vindo da janela virada para o fundo da casa. Iiiic, iiic, iiiic... Pronto, pensei: é o mickey. Que diabos estará fazendo? Passando um rádio aos comparsas? Seguinte galera, cheguem mais porque hoje tem até queijo brie no chão da sala... O problema da falta de discrição é que às vezes ela pode ser fatal. Ao invés de atrair somente os seus pares, no quintal do vizinho, a gata ouriçou os pêlos e se espreitou em cima do muro. O felino desceu matreiro pelo tronco da pitangueira, escondendo-se na forração de dinheirinho, que depois das chuvas ficou bem alta. De repente, após minutos de silenciosa tensão, enfim o bote. Um barulho horrível seguiu-se a uma enorme correria pelo jardim. Durou pouco, mas foi impressionante. Esganiçados infinitamente mais agressivos do que aqueles que os gatos emitem na relação sexual. Não sei dizer se o raticídio se consumou. Sei que desde então os rastros do bicho sumiram. Sem mais cocozinhos ao redor do fogão e da pia, os queijos da ratoeira ficaram para as formigas. Inclusive, na manhã pós caçada, descobri que embaixo da pia da cozinha, ao lado do sifão, havia um monte de jornal picotado que mais parecia uma cama do menino Jesus no presépio. Isso mesmo. O bicho tinha planos de constituir família ao lado das panelas. Felizmente, passara-se um mês e esses planos também não foram mais retomados. Felizmente, é só na ficção que o Jerry se dá melhor que o Tom.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

MAURO E TARSILA

Conheceram-se no inglês. A primeira vez que a moça o ouviu falar alguma coisa foi nessa língua. Não era um adolescente propriamente bonito, mas achou graça em sua pronúncia, no olhar difuso de quem está e não está. Havia, enfim, toda uma presença de espírito no rapazinho que desde o princípio chamara a sua atenção. Já Tarsila era a pérola com a qual todos os garotos sonhavam cortejar. Assediada pelo mestre de capoeira do bairro, e no entanto o desprezou. Recebeu poemas e declarações apaixonadas de Túlio, que tinha helicóptero particular e casa nas Laranjeiras, mas também por ele nunca se interessou. Certa vez, a professora de inglês propôs um exercício em duplas e escolheu ao acaso os dois para trabalharem juntos. As bochechas do rapaz coraram imediatamente, e foi aí que ela descobriu: nada pode ser mais atraente do que um homem tímido por sua causa. Assim que a aula acabou, Mauro até tentou prolongar o assunto, ir além dos phrasal verbs, mas as mãos suavam, e as falas, ensaiadas, atropelavam-se antes mesmo de deixarem os pensamentos. Para a aula seguinte, resolveu tomar uma decisão. Redigiu uma carta na língua de Shakespeare, recheada de clichês e metáforas sentimentais. No intervalo da aula, após muito sofrimento, reuniu coragem e enfiou o papelote dobrado no bolso externo da mochila de Tarsila. No minuto seguinte pegou-o de volta, renunciando por completo à ideia, convicto de que um homem de verdade não carece das letras para se esconder. Na aula seguinte ela não foi. Escarlatina. Foi reaparecer só na outra semana, na hora do intervalo, de mãos dadas com um sujeito mais velho, um tipo excêntrico, cheio de brincos no nariz e uma camiseta com o rosto do trapalhão Mussum, escrita “Ô do Jabá!”. Mauro soube depois que se tratava de um músico, baixista duma banda de rock progressivo, famoso no bairro quando, em sua festa de aniversário, distribuiu uma jarra de suco de lichia com docinhos sintéticos misturados ao gelo. Vê-la com outro fê-lo sentir-se a pessoa mais insignificante do mundo. O garoto chegou a pedir aos pais para o tirarem do inglês, sob a alegação de que o método de ensino da escola era ruim e não favorecia o aprendizado. A mãe atendeu à solicitação do filho, sensibilizada por não ser de seu feitio pedir para deixar de estudar alguma coisa.
Transcorreram-se seis anos para que o acaso pusesse Mauro e Tarisla em contato novamente. Foi no parque, numa tarde nublada, ela fazendo cooper com o dálmata; ele sozinho, também correndo, de cabelo curtinho, corpanzil atlético, quase irreconhecível. Ela sem namorado, ele começando a engatar uma história com uma garota da mesma academia. Ao se deparar novamente com Tarsila assim, tão inusitadamente, passado tanto tempo, curioso que a tenha cumprimentado com tamanha naturalidade, como se fosse ontem a última vez, como se fossem muito mais íntimos do que de fato eram. Papearam à beça, e em pouco tempo descobriram inúmeros gostos em comum. Mauro descobriu ainda que o tempo só lapidara aquilo que já era bom em Tarsila. Marcaram encontro para a mesma noite num pub irlandês perto da Paulista, ocasião em que a garota contou sobre as aulas que dava aulas de flamenco, e ele, bem brevemente, mencionou estar no último ano do ITA, com planos de seguir a carreira de astronauta. Encontraram-se várias vezes depois disso. Adoravam passar madrugadas assistindo comédias italianas do tipo pastelão, às vezes se viam só para conversar, dividir alguma angústia, ela bem mais do que ele, mas em qualquer circunstância a presença de um sempre confortava a do outro. Para ele, nada no mundo era mais belo do que vê-la dançar e tocar castanholas ao som de Camarón de La Isla ou Paco de Lucia. No entanto, por alguma incógnita razão, nunca se permitiam um vínculo maior, que de fato os alçasse à condição de compromissados. Ficavam meses seguidos sem se ver, e de repente, ela ligava pra ele, viam-se no minuto seguinte e passavam juntos o resto da semana, curtindo aquela intensidade que não se perdia com o tempo. A noite anterior à ida de Tarsila para Madrid foi a última vez que se viram. Não transaram. Abraçaram-se muito e choraram, como se já pressentissem ser aquela a última vez. Tarsila estabeleceu-se na Espanha, sagrando-se excelente dançarina. Nunca se casou. Viveu com três homens e morreu ao lado do último, num acidente de carro banal. Mauro se casou com uma colega de trabalho, com quem teve um casal de gêmeos. Há um mês atrás ele recebeu convite para assumir a diretoria de uma multinacional francesa que fabrica aviões, mas preferiu ficar na Embraer, perto da família. Nunca soube da morte de Tarsila. Dela, guarda apenas memórias de uma grande amizade, e a cartinha em inglês, que nunca teve coragem de revelar.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

BREVE ENSAIO SOBRE A PICUINHA

A piscina do clube é bacana, costuma dizer. Pena que ultimamente ela esteja indo tão pouco, graças à sua dermatite atópica crônica, doença que não se bica com o cloro. A asma da pele faz com que a menina ferva por dentro, mais ou menos como se alguém jogasse pimenta malagueta na pele, fazendo alastrar enormes feridas que não param de coçar. Mas como à ocasião daquela tarde de verão ela também já não estava mais acordando com o lençol manchado de sangue, o pai colocou na balança e viu mais prós do que contras numa ida esporádica à piscina. Valorizando o evento, prometi-lhe a compra de novos óculos de natação, de repente um rosa choque de sua princesa favorita.
Pouco antes, porém, de chegar ao vestiário da piscina, lembrei que o exame médico da menina estava vencido. Pior: a fila da renovação estava enorme. Pior que o pior: um dos maiores contribuintes para a dermatite é a absoluta impaciência de seu portador. Depois fomos saber, a fila estava enorme porque a médica deu cambalacho no ofício, e em seu lugar escalaram uma auxiliar de enfermagem de idade avançada, já com as ideias meio atrapalhadas. Então, bem mais que uma mera dificuldade de garimpar fungos, a senhorinha não tinha a menor intimidade com o computador que validava as carteirinhas. Durante os aproximados quinze minutos que eu e a Maricota ficamos na fila, discutimos bravamente. Ela dizendo que não aguentava mais esperar, eu dizendo para ir se acostumando, pois a vida é cheia de esperas. Quando chegou nossa vez, confesso que já estava quase desistindo do programa.
- Por favor. Abra os pés. Isso. Agora abre bem os dedos. Vira de costas.
Foi aí que notou. A batata da perna da menina estava tomada de manchas róseas, algumas revestidas de cascas esbranquiçadas.
- Micose? – a senhorinha pra mim.
- Não. Dermatite atópica. Uma doença genética, sem o menor risco de contágio.
- Mas... Você tem um laudo médico?
- Sim.
- Posso ver?
- Ficou em casa.
- Mas eu preciso ver.
- Ok. Amanhã eu te trago.
- Não! Precisa ser antes.
- Dona... Já disse que amanhã sem falta eu trago original e cópia autenticada, se você quiser.
- Não me leve a mal, mas infelizmente, sem o laudo não posso liberar.
- Peraí.. A senhora não é médica? Não tá vendo que isso aqui é dermatite?
Sem perceber, cutuquei na ferida, não da minha filha, da examinadora. Óbvio que ela não era médica.
- Não te interessa se eu sou médica ou não! Interessa que o clube precisa de um laudo atestando a doença da menina, e sem isso eu não posso liberar..
Cansado de argumentar com a síndrome do pequeno poder, decidi mudar o foco.
- É o seguinte. Essa aqui é Maria Júlia. Ela tem cinco anos de idade e mora num apartamento quente, apertado, quase insalubre. Hoje, Maricota acordou sonhando com os jatos de água da ilhota da piscina grande e com os toboáguas da pequena. Então, gostaria agora que a senhora dissesse diretamente a ela se poderá ou não nadar hoje.
Saí da sala, mas procurei um ângulo estratégico, bem na entrada da porta, de onde pudesse ver a cara das duas.
- Infelizmente, só com o laudo.
Entrei de novo espumando de raiva e puxei a menina pelo braço sem conseguir olhar na cara da mulher. Saímos dali e sentamos no primeiro banco que encontramos. Olhei pro lado, vi a bichinha com as costas arcadas, braçinhos dobrados apoiados sobre as coxas, as mãos segurando o queixo e um certo esforço no semblante dela para não chorar. Fiz uma força hercúlea para segurar o impulso passional de armar o barraco para ao invés disso, buscar uma solução mais racional, que efetivamente resolvesse o problema. Até que bingo. Bateu o lampejo. Fomos juntos na direção da catraca da piscina, e diante da fiscal de plantão, sorri do jeito mais simpático que pude:
- Oi, tudo bem como você? Viu, a carteirinha dela ficou com a mãe. Pode passar por baixo?
Vupt. Passou. Claro. Normas são feitas por adultos, para adultos. Uma vez lá dentro, valorizamos muito mais ainda o toboágua e a ilhota com jatos d’água. Depois de brincarmos, já exaustos, descansando ao sol que batia na beira da piscina olímpica, aproveitei para explicar à menina as nuances morais que diferenciam a vingança da picuinha.
- Então minha filha, agora que você já entendeu, quero que volte lá, entre na sala da mulher, e balançando os cachos molhadinhos, diga à mulher quão deliciosa a piscina estava.