quarta-feira, 3 de agosto de 2011

RAVE INFANTIL

No aniversário de sete anos da mais velha, a cônjuge teve a brilhante ideia de comemorar fazendo um acampamento no quintal com todas as crianças da classe. Começou às oito da noite, com as crianças comendo uma pizza. Depois elas partiram para um caça ao tesouro contendo mais de quinze pistas espalhadas pela casa. Finda a caça, uma balada pesada na sala que deixou as crianças excitadíssimas. Para acalmar os ânimos dançantes, emendamos uma sessão de cinema. Pantera Cor de Rosa. Por fim (uma hora tinha que ter um fim), já perto de uma da manhã e com todos dentro da barraca, uma historieta para embalar o sono geral da nação. Trégua curta na madrugada, interrompida às seis horas da manhã seguinte, com a molecada curtindo a barraca e aproveitando os primeiros minutos do sol para ler revistinha da Mônica. Ainda recebemos os pais que vieram tomar um café da manhã e pegar os filhos. Ou seja, a rave infantil começou às oito da noite de sexta e acabou ao meio dia de sábado. Diante da curiosidade de alguns pais sobre a noitada, e particularmente sobre como conseguimos sobreviver a ela, elaborei um pequeno diário contando como foi essa experiência.


BALADA 1


Já era quase dez da noite, e eu e meu sogro lá, procurando specks para montar as barracas no quintal, ao mesmo tempo em que ouvindo o rescaldo da música “baby” (Justin Bieber) pela quarta ou quinta vez, até que o Matuco deixa a pista e comparece na área pra dividir um pouco da intensidade do momento:
- Victor, preciso te falar uma coisa...
- O quê Matuco?
- É a música.
- O que tem a música?
- A música está entrando dentro de mim, a música entra dentro de mim, fica lá, não sai de dentro da minha cabeça e...
Vira as costas e volta correndo para o palco.
- Isso porque não tomou um gole de cerveja. – meu sogro.


BALADA 2

Lá pelas onze da noite, depois de a pizza emendar com a caça ao tesouro e a montagem das barracas, eu já estava o pó. Mas a DJ cônjuge continuava lá, firme e forte, alternando Bieber, Michael Jackson e Black Eyed Peas nos embalos de sexta à noite. Percebi então que se não fosse eu o reacionário da casa, aquilo nunca teria fim. Coitados dos vizinhos. Imbuído por esse falso altruísmo que - pah - subitamente desliguei o som, e como resposta imediata, aquele ahhhhh em coro.
- A gente não quer parar agora! É! Liga aí de novo. Põe o Maicol.
- Crianças... Só uma pergunta.
- Quem aqui considera que essa está sendo a melhor balada da vida?
- Euuuuuuuuuuuuuuuuu! – unanimidade.
- Então não me encham mais o saco e agora vão lá atrás decidir quem vai dormir com quem nas barracas.
- Uhhhhhhhhu..



CAÇA AO TESOURO 1


Palmas para a escola Alecrim. Um ano depois do projeto Grécia, nossos filhos ainda preservam a memória mitológica. Se os senhores pais, tal como nós, suam a camisa para chegar ao final do mês e honrar aqueles infelizes boletos do Bradesco, imaginem que a pista nº 2 era essa:

UMA SEMENTE É LANÇADA À TERRA. NASCE ENTÃO UM FRUTO, QUE DEPOIS DE COLHIDO, VOLTA AO REINO DA TERRA. LÁ (NO REINO DA TERRA), QUEM ACEITOU ESSE FRUTO PAGOU COM A LIBERDADE.

Com bem pouca ajuda, pouca mesmo, eles foram se lembrando de Hades, Perséfone, a semente de romã oferecida, e aí a Maricota os levou para conhecer a Romãzeira que está se recuperando ao lado do portão social.


CAÇA AO TESOURO 2


Palmas agora para a Laís. Na caça ao tesouro, havia o seguinte combinado:


CRIANÇAS,
AGORA VOCÊS FORMAM UMA EQUIPE, QUE TERÁ UMA MISSÃO A CUMPRIR:
ENCONTRAR “O TESOURO DA BALADA”.
MAS PARA ISSO, PARA ENCONTRÁ-LO, VOCÊS DEVERÃO SEGUIR AS PISTAS QUE ESTÃO ESCONDIDAS PELA CASA.
ESCOLHAM ENTÃO NA EQUIPE UMA CRIANÇA QUE FICARÁ COMO A RESPONSÁVEL PELA LEITURA DAS PISTAS.
SEMPRE QUE ALGUÉM ENCONTRAR UMA PISTA NOVA, DEVERÁ ENTREGÁ-LA À LEITORA ESCOLHIDA, QUE A LERÁ EM VOZ BEM ALTA PARA QUE TODO O RESTO DA EQUIPE POSSA OUVIR.

Aproveitando o momento político do país (semanas antes da eleição da Dilma), fiz questão de instaurar um sufrágio infantil:
- Quem aqui vota em fulano? – uma mão estendida.
- Quem vota em sicrano? – nenhuma mão.
- E no beltrano – de novo sem mãos.
Candidatando um por um, deixando a Laís de propósito por último, e então, quando faltava candidatar só mais uma criança antes dela, a própria finalmente se manifestou:
- Victor, e eu? Você está esquecendo de mim...
- Crianças...
- Alguém aqui quer votar na Laís?
Até quem já tinha prestigiado outros candidatos decidiu se unir àquela onda democrática. Liderança nata. Nata no sentido de natural, de algo nascido, e não foi só o resultado da eleição que provou o quanto a Laís conquista (e não impõe) a liderança. Conforme as pistas eram encontradas, claro, outras crianças também manifestavam a sua vontade de lê-las. Todas queriam provar às demais e a si próprias que superaram esse desafio tão importante e atual na vidinha delas: a alfabetização. Foi quando intervim novamente para esclarecer que sim, isso até seria possível, desde que a própria Laís deixasse, e para quem ela deixasse, afinal, foi o grupo que agora há pouco a elegera para esse papel. Logo, se cabia a alguém delegar o poder, esse alguém só poderia ser o seu detentor. Foi aí que a alma generosa da menina se revelou. Não apenas por permitir que os outros participassem da leitura, quem a conhece minimamente sabe que isso não surpreende. O mais incrível foi o cuidado que a Lalá teve de abrir a oportunidade para cada uma das crianças interessadas, sem jamais permitir que uma mesma repetisse a leitura, a despeito dos insistentes pleitos daqueles que já tinham lido.



CAÇA AO TESOURO 2


DÉCIMA PISTA

SOU UM MEIO DE TRANSPORTE MUITO ANTIGO


Em disparate para a garagem em busca do tal meio antigo de transporte, nenhuma criança nota que a bicicleta está camuflada detrás das toras de madeira da área de serviço. Com a equipe meio sem norte, meio sem ideias, o Dé raciocina, olha pra mim, parece pensar duas vezes antes de falar, mas mesmo assim decide continuar:
- Ô Victor..
- Esse teu carro aí já tá meio velho, não tá não?



CAMPING 1



Esgotados, quase desfalecidos, não as crianças, eu e a cônjuge, bendita a cine-sessão de Pink Panther. Henry Mancini acalmou um pouco os ânimos da turma, mas nem de longe solucionou o problema. Pior. À meia noite eu e a cônjuge já estávamos sozinhos no time dos adultos. Restaram-nos onze crianças para gerenciar, já divididas em três barracas, todas começando a se aconchegar em seus incomuns aposentos. Claro que àquelas alturas do campeonato, nada mais nelas soava-nos gracioso. Brincadeiras de pum, cócegas, risadinhas, tudo era inoportuno. De cima da janela do quarto, deitada na cama, a cônjuge já dava mostras de jogar a toalha:
- Quietos! Silêncio agora! Se vocês não obedecerem a gente, vamos mudar a distribuição das barracas. Outra coisa. Quero que todo mundo devolva pro Victor essas malditas lanterninhas.
Parênteses. A caça era ao tesouro, mas não um tesouro qualquer. A caça era ao “tesouro da balada”. Então, além das tradicionais perucas e óculos, a cônjuge arrematou na 25 de março aquelas varetas luminosas que animam 9 entre 10 pistas de casamento. Obviamente, dentro das barracas, na curtição da noite, a cambada de impúberes não parava de chacoalhar os tais bastonetes coloridos, brincando de lhes dar as mais diversas formas. Sentindo-me uma espécie de auditor fiscal da receita federal, saí austero pelas portas das barracas, recolhendo um a um os instrumentos. Depois que recebia umas quinze varetas, como todo bom fiscal aduaneiro, não me contentava:
- Cê tá pensando que eu sou lóki, bicho? Passa o resto que eu sei que tem mais...
E tiravam lá mais uns dez, escamoteados debaixo do colchonete. Levei tão a sério a blitze, que talvez por isso a Milena tenha, em nome de toda a turma, resolvido se vingar. Com requintes de crueldade, a cada dois minutos ela gritava de dentro da barraca:
- Victor! Achei mais um!
Chegou uma hora que eu já não agüentava mais levantar do chão pra pegar a porcaria dos bastãozinhos:
- Chega! Pelo amor de Deus, chega! Pode ficar com as tuas lanterninhas, não adianta nem me chamar que eu não vou mais me levantar pra pegar.


CAMPING 2


Como sempre, a retórica punitiva não surtia o efeito calmante que dela se esperava, mas na prática nós não conseguíamos fugir da vala comum das ameaças. Ninguém parava quieto, nenhuma criança se rendia ao sono, e diante disso, tive a brilhante ideia de lhes contar uma história qualquer. Já era quase uma da manhã, então, deitei exausto entre as três tendas sem a menor disposição para tirar um enredo da cartola. Ao invés de tentar inventar, apelei para uma messiânica sessão nostalgia. Em voz baixa, pausada, quase letárgica, resgatei os meus nove anos e a primeira vez acampando no meio do mato. Sem falsa modéstia? Foi fácil até conduzir a molecada para um diálogo mais direto com a natureza. Remeti ao barulho do rio descendo a jusante, o vento sacudindo a copa das árvores, o canto dos pássaros despertando com o sol, e justamente nesse momento new wave da noite, um grilo de verdade que passava pelo jardim também resolveu dar uma forçinha. Ouçam crianças, ouçam com atenção. Há um grilo entre nós. A rítmica da história, que começara a dez por hora, dali a pouco já estava a menos de um por hora. Em seu conteúdo, obviamente nada de emocionante acontecia, só as tais sensações e sons. Diante do repertório de meditação in natura se esgotando, notei, num mix de orgulho e alívio, que metade da turma já dormia pesado. Faltava, porém, a outra. Nessa toada de não perder o fio da meada, aconteceu até uma inesperada empolgação de minha parte. Resolvi me levantar do chão e passar a contar a história de pé, circulando pelas três barracas. E a história que começou como uma obrigação, um mero estrategema para se livrar de um problema, transformou-se num discurso filosófico sobre a existência infantil:
- Crianças...
- Antes de fecharem os olhos e caírem no sono, queria que soubessem de uma coisa muito importante. Saibam que é muito mágica essa possibilidade que lhe deram de existir. Não importa se quem lhes proporcionou esse dom tão precioso foram apenas os seus pais, ou se antes deles teve um tal de Deus, ou quem quer que seja. O que verdadeiramente importa é que vocês existem, são seres queridos e amados; logo, por essas privilegiadas razões, vocês têm tudo para conseguirem aquilo que todas as pessoas no mundo querem, mas só algumas de fato conseguem: a felicidade!
- Todas as fases da vida são incríveis. Todas têm a sua magia e encanto. Mas se me perguntam: Qual a melhor?
- E eu não teria dúvidas em responder: a fase em que estão!
- Aproveitem então. Aproveitem, agradeçam à escola, pois sem ela vocês jamais teriam se encontrado e formado esse grupo tão unido, tão amigo, tão...
De repente, da barraca azul ao lado da janela da cozinha, o discurso inflamado é interrompido por um tímido - clap clap clap - cuja autoria remanesce anônima, ainda que fundadas suspeitas recaiam sobre a insaciável Flor de Maria. Independente de quem tenha vindo, conforta-me lembrar que nessa faixa etária as palmas ainda são sinceras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário