terça-feira, 9 de agosto de 2011

A FAVELA DO MANGUE


Bons alqueires de Mata Atlântica separam a favela do Mangue da nossa churrasqueira, erguida no meio da floresta. Isso significa que embora estejamos confinados em um condomínio fechado, ao lado esquerdo do lotealmento, onde os vizinhos são apenas árvores e bichos, não foram levantados muros de proteção.
Tempos atrás, veio a Hildinha me contar sobre o pessoal da favela do Mangue, que se embrenhou na mata e aproveitou a inexistência do muro para entrar no condomínio. Algo como 1 km de floresta densa desbravada. Curiosamente, havia mais de 15 casas para eles elegerem como ponto de chegada, e foram escolher justamente a nossa churrasqueira, felizmente não nos dias em que costumamos ocupá-la. Os trilheiros do manguezal cruzaram a mata no meio de semana, por ser essa a melhor ocasião para surrupiar casas de veraneio. Ao que soube depois, até fizeram sim pequenos furtos na vizinhança, não, porém, na nossa casa. Mas deixaram uma caixa de cerveja camuflada atrás da churrasqueira, no meio da floresta, a mesma qual decidimos consumir por acharmos que os donos não voltariam para pegá-la.
Motiva-me uma reflexão sobre o episódio porque antes da invasão deles ao condomínio, eu já havia me dado o direito de fazer o inverso. Tanto quanto os larápios, invadi um mundo ao qual não pertenço, não a pé e pelo mato, de bicicleta e pela estrada. Descobri a favela do mangue por total acaso, numa manhã de sábado qualquer, indo comprar peixe nas bancas da praia do Perequê. Sabe como é, circular de bicicleta pelo mundo desperta curiosidades nas pessoas que os vidros do carro te privam, então, pintou uma curiosidade de desvendar o que a orla do Perequê escondia. Logo atrás das primeiras bancas de peixe, saí ziguezagueando por um beco bastante comprido, formado por muros altos das primeiras casas de alvenaria. Ao final do beco, acabam as construções mais sólidas e chega-se, enfim, à favela. Um conjunto de casas coloridas, uma enorme palafita erguida sobre o rio que deságua no mar. Na maré baixa, os moradores dos casebres de madeira carcomida e tinta descascada presenciam hordas de crustáceos que sobem pelas estacas e surgem por todos os lados. Devido ao forte calor que faz naquele canto do litoral paulista, o esgoto das casas se mistura ao enxofre do mangue, e principalmente na maré baixa, o odor fica desagradável. Já na maré alta o cheiro alivia. Postas de lado as nuances olfativas, curti bastante os pontilhados que conectam as casas e balançam como se você estivesse num barco, com a vantagem de que prazerosos estalos são emitidos pelas rodas da bicicleta em movimento na superfície marceneira. Em volta dos casebres de porta aberta, crianças de membros esquálidos e barriga roliça empinam pipa, enquanto suas mães se dividem entre uma bronca e outra descamada da tainha. Gospel, rap e forró de Fortaleza compõem a trilha sonora do ambiente. Gatos lambem as cabeças de camarão descartadas aos montes no chão. No fundo da favela, onde acabam as habitações, começa o campinho, local em que a molecada mais velha se reúne para bater uma bola e lançar tarrafa na parte mais funda do rio. Embora aquelas águas estejam poluídas, dizem que tiram peixes, caranguejos e até enguias. Na última vez que estive na favela do Mangue, fiz questão de ir acompanhado. Pus a Maricota (minha primogênita) na cadeirinha da bicicleta, pois sabia que ela se interessaria pelo cenário de cinema ao ar livre:
- Pai, eles que são os “pescadores”? – repetia incansáveis vezes, como se tal condição os transformasse em seres de outro planeta. Até que mais para o meio do rio, numa ruela então desconhecida de mim, veio caminhando um moleque grande, alto, não mais que dezesseis anos. Mancava muito, possuía escoriações por todo o corpo, seu olhar denunciava um terrível sofrimento. Aproximando-me mais, notei ainda uma enorme ferida no couro cabeludo, que sem exagero? Parecia expor os miolos do garoto. Mais à frente, outros dois rapazes nos encararam de um jeito que deu vontade de deixar de exisitir.
Tempos depois, quando veio a Hildinha reportar a história da trilha ligando a favela ao condomínio, confirmei a suspeita de que aquele mangue guarujaense abriga espécimes da mais alta periculosidade. São poucas, é verdade. A maioria é da paz, no entanto há sim alguns tipos bem temidos que habitam o ecossistema local.
Sem qualquer pretensão de militância social, menos ainda querendo suscitar discussões políticas ou ideológicas, mas sem também sentir vergonha de assumir uma certa inocência, própria de quem vê poesia na pobreza só porque nunca soube o que é de fato viver na pobreza; termino por aqui, curioso para saber se algum dia no Brasil os pobres deixarão de ser invasores na terra dos ricos, e os ricos na terra dos pobres.


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